Em certo momento, um personagem se pergunta para onde vão os mortos que morrem após já estarem mortos. Parece estranho e confuso? Se sim, há mais pela frente. Chegaremos lá. Ou não…
Para ficar somente em anos bem recentes, o gamer que se considera apreciador da cultura nipônica teve muito o que comemorar. Independente da qualidade final dos materiais, entre jogos exclusivos e outros multiplataformas, tivemos: Ghost of Tsushima, Sifu e Ghostwire: Tokyo.
Três jogos que, cada qual em seu estilo — exploração em terceira pessoa de mundo aberto, um beat ’em up old school e um FPS de horror — traziam elementos característicos da história, cultura, culinária e demais segmentos do Japão. Só que essa trinca, agora, se desfaz, pois uma nova obra é inserida entre os citados acima: sejam bem vindas e bem vindos ao universo de Trek to Yomi.
Distribuído pela carismática e incansável Devolver Digital, e desenvolvido pela polonesa Flying Wild Hog (aquela responsável pelo reboot de 2013 de Shadow Warrior), Trek to Yomi, do diretor Leonard Menchiari, chega aos consoles da geração anterior, Xbox One e PS4, e aos consoles da geração atual, Xbox Series S/X e Playstation 5, e também dará as suas caras e espadadas nos computadores.
Tudo isso oportunizando uma proposta artística e referencial bastante diferenciada: a de homenagear os clássicos cinematográficos do cinema japonês que colocaram o universo dos samurais no imaginário popular de meados do século 20 a partir dos filmes do genial e saudoso Akira Kurosawa, diretor de Os Sete Samurais e outras obras-primas.
No jogo, estamos na pele de Hiroki, o nosso protagonista, em dois momentos de sua vida (ou três, a depender do que consideramos… vida). No primeiro momento, introdutório das mecânicas e conceitos básicos do game, controlamos uma destemida e jovem criança, que deve aprender sobre como atacar, se esquivar, inverter posicionamento para não ser golpeado por trás, defender-se e contra-atacar bem antes de ascender à condição absoluta de protagonista adulto.
De forma instantânea, recém finalizada a introdução, um incidente misterioso acontece e logo Hiroki é tomado pela vontade de sair para investigá-lo.
Assim, após esse momento introdutório, continuamos a nossa jornada com o protagonista em sua fase adulta. Ele, cujos objetivos pessoais são as forças propulsoras de sua jornada, vai em busca de respostas para os seus principais questionamentos sobre a vida… e a morte.
Em se tratando de forma e conteúdo, faço com que minhas primeiras palavras sejam de congratulação. Fora do esquema tradicional de coletar coisas e evoluir o personagem, que aqui até importam menos, pois é um jogo rápido e que não estimula (tanto) a exploração, a decisão por criar uma obra com aspecto de tela letterbox (com as tarjas pretas nas extremidades inferior e superior) é corajosa. Além disso, afora as tarjas pretas, Trek to Yomi é totalmente em preto e branco.
São duas decisões artisticamente relevantes. Contudo, também acabam sendo problemáticas no sentido da jogabilidade. Ora, apesar de Trek to Yomi poder ser colocado na cesta dos jogos indies, ele é um polpudo jogo indie. Não é um game que reproduz gráficos em 8 bits e muito menos que tenha sido feito em uma garagem por apenas um ou dois desenvolvedores. Ao longo dos últimos doze ou treze anos, testemunhamos o mercado dos jogos indies ganhando (com razão) uma importância sobremaneira.
Com isso, assim como elevaram-se os preços de compra desses jogos, as equipes de desenvolvimento também foram ficando cada vez maiores. Sabemos que há, muitas vezes, fatores de riscos e recompensas mais propensos a acontecerem nos jogos que fogem do nicho dos triple A.
Os indies, por terem “menos” a perder, podem se dar ao luxo de arriscarem mais em suas mecânicas, narrativas e propostas. E esse não deixa de ser o caso de TtY. Em 2022, é louvável que os ultra poderosos consoles e os robustos computadores estejam “submetidos” à fotografia em preto e branco e a razão de aspecto de tela letterbox de um jogo indie com formatação de um double A.
Tudo isso é destacado para se chegar em algo que é impactado negativamente pelas decisões artísticas atreladas à direção de arte e fotografia da obra em questão. É certo que estamos diante de um dos jogos mais graficamente corajosos e bonitos lançados no ano. Certamente, junto com Horizon: Forbidden West, Elden Ring e Tiny Tina´s Wonderlands, ele figurará entre um dos mais belos do ano. Fato! Só que essas mesmas corajosas e já elogiadas decisões acabam por atrapalhar justo no quesito em que não deveriam atrapalhar: a jogabilidade.
Antes de chegar ao ponto em como a jogabilidade é atrapalhada e por vezes embarreirada pela fotografia em preto e branco, é preciso se trazer outros dois elementos para essa parcial análise: os planos e ângulos de câmeras. Em detrimento dos planos e ângulos cinematográficos, o jogo miniaturiza muito da nossa visão ambiente e panorâmica. Até mesmo o Modo Foto, elemento que está presente na maioria dos jogos atuais, aqui também me pareceu limitado por duas razões. A primeira é: não existe modo foto no jogo!
A segunda é mais simples e já se tratou aqui: ainda que o botão de compartilhar imagens e vídeos permita as capturas de telas, a razão da imagem letterbox irá manter as tarjas pretas nas extremidades da foto ou vídeo capturados. Para que se tenha a foto ou vídeo sem as tarjas, o jogador precisará recorrer ao recorte do elemento capturado.
Outro fator que pode atrapalhar aquelas e aqueles que experimentarem o jogo em televisores ou monitores cujas polegadas possam ser consideradas insuficientes é que, sem nenhum pudor, os personagens (incluindo o jogador) ficam realmente miniaturizados por vezes nos cantos da tela. E mais: é normal que, em determinados instantes, possamos nos encontrar perdidos nos cantos escuros e já sombrios da atmosfera do jogo.
Em muitas dessas ocasiões, o plano da câmera está bastante distante do jogador, obrigando com que tenhamos máxima — e indispensável — atenção em momentos assim, visto que é possível ser subjugado por um inimigo com apenas dois ou três golpes.
E como é um jogo que lida com a precisão dos ataques, defesas na hora exata e com os contra ataques, não conseguir enxergar os braços ou a arma do personagem principal ou a do inimigo não pode ser interpretado de forma nenhuma como algo bom, desafiador, um pequeno problema ou mesmo enquanto algo natural, visto que a depender da força do inimigo e da nossa barra de vida, bastará um golpe para que todo o avanço até aquele ponto seja perdido.
Mas não é só a jogabilidade que finda sendo atrapalhada por essa miniaturização da escala panorâmica de visão do jogador. O game possui muito suporte histórico e narrativo que utiliza-se de legendas para melhor situar o jogador sobre aquele universo. Por sorte, TtY não é um RPG que se apoie em centenas ou milhares de legendas.
Caso fosse, teríamos muitos relatos negativos e ruins sobre a experiência de qualquer jogador que se apoie nas legendas para melhor compreender a história do game. A legenda, que é branca, sempre que aparece em momentos em que a parte inferior da tela está envolta em um cenário branco, como a areia, fica quase que totalmente inviável de ser lida.
Surrealmente, a legenda não pode ser aumentada e muito menos houve um cuidado para se criar uma caixa de fundo preto com a legenda branca inserida dentro. Vale, em prol do alto teor artístico, aceitar essas decisões? Desconfio que não.
O quê cinematográfico de Trek to Yomi, infelizmente, consegue atrapalhar preciosos momentos da jogabilidade. Com toda a esquemática de cores usando apenas o preto e o branco, Trek to Yomi, fazendo jus ao cinema clássico de Kurosawa, realmente é um deleite visual (e problemático).
E apesar de na maior parte do tempo jogarmos em uma perspectiva 2D side-scrolling, é normal que o jogo acrescente uma outra camada e tenha diversos momentos por fase/capítulo em que a perspectiva será 2.5D. São momentos de breves respiros para o jogador que precisa explorar o quanto for possível do cenário em busca de colecionáveis e upgrades nas barras de vigor e vida.
Apesar de não ser tão punitivo quanto Sifu, o seu primo mais próximo, Trek to Yomi consegue reproduzir um exigente nível de dificuldades a cada novo capítulo, obrigando com que o jogador destrave os comandos de ataques e finalizações que são descobertos ou coletados no avançar do jogo. Sem entrar no terreno dos spoilers, existe um interessante momento que poderá encantar os fãs de jogos do estilo soulslike.
Em minha experiência com o jogo, até finalizá-lo, testei-o em três das quatro dificuldades oferecidas por ele desde o início. É possível dizer que o nível de dificuldade, até mesmo no modo mais simples, oferece certos desafios e perigos ao jogador. Em geral, os coletáveis de vida e vigor facilitam muito na jornada.
Sobre o sistema de coletar itens pelos cenários, é o mesmo processo visto em Ghostwire: Tokyo. São coletáveis que nos ajudam a conhecer mais sobre a cultura nipônica, mas que que não influenciam nem direta e nem indiretamente em nada para o andamento da narrativa principal. Fora isso, os problemas das minúsculas legendas permanecem, fazendo com que a leitura das informações dos coletáveis se torne desafiadoramente difícil e chata. As mesmas legendas voltam a aparecer no diário de Hiroki, que traz resumos de curtos parágrafos sobre o andamento do capítulo em que se está.
Se há algo bastante incomum no decorrer do game, é o fato de que Hiroki parece alguém que praticamente não liga muito para as outras pessoas, ao mesmo tempo em que precisa encarnar um ser revoltado com a situação atual em que sua terra natal foi deixada, como a narrativa insiste que pareça ser quase que o tempo inteiro.
Na maior do tempo, o nosso herói passa por NPCs severamente machucados ou quase morrendo como se eles nada fossem. Claro, há momentos interativos com curtos diálogos. Só que são raros mediante a quantidade de pessoas pelos cenários do jogo, principalmente nos três primeiros capítulos, antes de certo plot twist.
Do quarto capítulo em diante, o jogo parece emular o clássico literário A Divina Comédia, de Dante Alighieri. Para quem leu ou conhece a obra, sabe que o protagonista passa pelo inferno, purgatório e paraíso. Como há opções que passam a ser tomadas pelo jogador a partir deste capítulo, a depender de quais você foi selecionando em Trek to Yomi, basta trocar o paraíso pelo limbo e teremos uma vaga ideia do que nos aguarda na jornada dantesca de Hiroki.
E é daí em diante, claro, que o Yomi do título vai se justificando. E vamos experimentando momentos que vão do surrealismo ao sobrenatural de forma artística cada vez mais rica e plural.
Perto do fim, sobra tempo ainda para um momento bastante discrepante de tudo que foi jogado até então. Depois da ação do tipo soulslike em 2D/2.5D, do sobrenatural e do surreal, o jogo abre espaço para um momento à la Uncharted, com uma dose inesperada e peculiar de aventura. Não chega a ser épico, mas também não atrapalha e tem lá sua diversão em seus dois ou três minutos em que dura toda a set piece.
Ao fim, é uma pena que as decisões tomadas em certo instante do jogo não aceitem um save para se retornar ao instante anterior em que elas precisam ser tomadas, obrigado com que a/o jogador(a) precise recomeçar o jogo do zero se quiser ter a oportunidade de escolher outras decisões para ver e conhecer os outros finais que Trek to Yomi possui.
É óbvio que isso não chega a comprometer a experiência/jogabilidade como as questões das legendas diminutas e de certos planos de câmera que deixam o personagem minúsculo. São frustrações que podem ser corrigidas em um patch no dia do lançamento ou em outras futuras atualizações.