O particular dentro do extraordinário sempre foi algo que fascinou a humanidade. Seja na literatura, no teatro, no cinema, nos quadrinhos ou nas séries, histórias individuais em contextos homéricos, gigantes e calamitosos comumente atiçaram a curiosidade humana.

Afinal, há todo um contexto de representação aí. As pessoas podem pensar: “e se isso acontece comigo, o que eu faria? E é dessa perspectiva de tomar o todo por uma parte que se inicia Somerville, jogo da Jumpship que foi disponibilizado no Game Pass no último dia 15 de novembro.

E é justamente no controle de um protagonista silencioso, com o intuito de que possamos criar uma afinidade e uma intimidade maior com o que o cerca e à sua família, que Somerville tem o seu primeiro grande acerto. Afinal, milhares de linhas de diálogos não necessariamente trariam uma maior consideração por um personagem ou grupo de personagens.

Certas vezes, para que nos afeiçoemos por quem está na tela, basta nos colocar diante de uma família que adormeceu de frente a um televisor que teima em ser a única fonte de luz ainda ligada em uma sala de estar de uma pequena casa para três pessoas. E é assim que se inicia Somerville, que se passa na cidade de mesmo nome, no estado de Massachusetts.

Apesar de ter sido alardeado como um jogo que poderia muito bem ser da Playdead (desenvolvedora dos já clássicos Limbo e Inside), Somerville apenas possui pessoas que trabalharam na Playdead. Mais especificamente, há Dino Patti, cofundador da Playdead, e que trabalhou tanto em Limbo quanto em Inside na qualidade de produtor executivo de ambos.

No mais, em termos de escala e desenvolvimento narrativo, as preocupações são outras. Claro, o protagonismo silencioso permanece, ainda que aqui, mediante os jogos listados acima, temos até mais informações sobre o trio que mais nos importa em Somerville do que sobre os protagonistas de Limbo e Inside.

Dessa forma, Somerville não busca ser uma continuação espiritual ou uma nova direção para o que já foi feito pela Playdead. A Jumpship, através da direção de Chris Olsen para o game, opera em outra chave e a escala de narrativa e gameplay do jogo abraça outros sentidos e muito se apoia em diversas referências cinematográficas ao longo dos seus curtos 14 capítulos.

Não à toa, na descrição da filosofia da empresa em seu site, há o seguinte: “Nossa filosofia é quebrar noções preconcebidas sobre o que os jogos podem ser, explorando as possibilidades criativas da mídia (…) Acreditamos nos jogos como uma ferramenta de questionamento da condição humana.”

E Somerville segue a filosofia da Jumpship no sentido de explorar e buscar referências em outras mídias para, a partir da narrativa contada, questionar a condição humana. Para tanto, a maior das referências exploradas pelo game é Guerra dos Mundos, obra literária de H. G. Wells que se tornou filme ao menos duas vezes, além de série.

Na versão mais famosa, dirigida por Steven Spielberg, tivemos Tom Cruise protagonizando o filme que saiu há quase vinte anos. E lá, como cá, existe toda a estrutura familiar sendo alvo dos acontecimentos externos à família e até externos ao planeta Terra: uma invasão alienígena.

Só que Somerville não se liga apenas a estrutura de H. G. Wells para desenvolver sua trama. Visualmente, há referências diretas que vão desde outras obras de Spielberg (Contatos Imediatos de Terceiro Grau) até os floreios visuais e esteticamente impactantes de alguns filmes do diretor Jordan Peele (Us e Nope, mais precisamente), passando ainda por A Chegada, um pouco de Além da Imaginação e um tanto de 2001 – Uma Odisseia No Espaço.

Por sorte, apesar de ser um jogo relativamente curto – cerca de umas 6 ou 7 para se chegar ao fim – as referências não estão atiradas à esmo ao longo da obra. Existe um cuidado verbo-visual para alinhar bem o que está sendo contado e o que está sendo mostrado. Com isso, ganham os fãs de jogos, fãs da sétima arte e fãs de ficção científica. A sopa de referências não estraga e nem mesmo ganha um destaque desmedido: todas aparecem em momentos convenientes para surpreender e incrementar a partir do impacto e da surpresa.

O que você vê quando você olha o que você enxerga?

À medida que a trama de Somerville vai avançando, o próprio jogo vai tomando o cuidado para nos apresentar novos absurdos – no bom sentido – visuais, técnicos, mecânicos e narrativos. Assim, e sem entregar nada da trama, o espaçamento geográfico, quando comparamos o exato início e o exato fim do jogo (um dos finais, no caso, visto que existem outros) mostra o quanto a trajetória do protagonista silencioso foi a jornada de uma vida encapsulada em poucas horas.

Do micro ao macro, somos convidados a desbravar o recorrente desconhecido menos em busca de respostas, mas, sim, mais em busca de reatar um laço desfeito por um infortúnio estelar.

Porém, até chegarmos ao fim do jogo, nossa sanidade será testada diante de um oceano de representações da ficção científica que não devem em nada aos grandes filmes e jogos. Nesse sentido, Somerville agrega ciência, tecnologia, ficção científica, filosofia e metafísica para que, no decurso dos catorze capítulos, fiquemos impressionados em uma série de ocasiões.

O controle em uma situação descontrolada

Se há algo que o jogo precisará consertar, isso diz respeito à movimentação do personagem principal. Por se tratar de um jogo que permite movimentação em três dimensões, fugindo um pouco do aspecto side-scroller de Limbo e Inside, por exemplo, Somerville peca por nos fazer controlar uma figura que não possui uma movimentação tão fluida.

Não dá para dizer que o controle é suave, quando deveria justamente ser, afinal, há tensão em todos os instantes. Sendo assim, o mínimo que poderíamos esperar era que a movimentação fosse menos rígida, pois é uma movimentação que não se apoia na realidade do contexto do jogo, travando o jogador por conta da figura com a qual se joga.

Dito isso, temos um jogo minimalista. Não há grandes possibilidades de interações ou mesmo mecânicas dificultosas. Andamos, usamos os gatilhos do controle, subimos ou descemos escadas, empurramos ou puxamos objetos. São funcionamentos e funções simples e eficazes, apesar do controle bastante rígido do personagem principal.

Quando o fim chega, as respostas se aproximam

Somerville é o tipo de experiência que pede uma revisita. Na primeira vez, vamos jogando porque toda a situação nos impressiona e a catarse nos abraça sem avisar. No segundo momento, o desafio é ir percebendo o andamento de tudo aquilo para obter respostas para algumas perguntas mais básicas que o enredo pode deixar.

Não que hajam pontas soltas. Na realidade, e sem spoilers, o final (ou os finais) é fechado em si mesmo, mas ao mesmo tempo é aberto para interpretações de quem joga. Todo o processo até o fim, contudo, é até mais interessante do que o fim da jornada. Se, do início até cerca da metade estaremos em todo o tempo resolvendo os quebra-cabeças que o jogo impõe, a outra metade de Somerville é mais acelerada, catártica, surpreendente e abusa de metafísica em uma jornada adentro do desconhecido, fazendo com que a segunda metade seja o que o jogo poderia ter sido desde o início.

O excesso de quebra-cabeças tornam a narrativa mais longa do que deveria ser. E isso, vejam bem, em um jogo que já é relativamente curto. Dessa forma, os puzzles recorrentes parecem apenas atrasar o desenvolvimento da narrativa principal. Por sorte do jogador que segue avançando, e para o azar de quem eventualmente tenha largado o game antes, a segunda parte se reveste desse peso emocional, científico e filosófico que os primeiros 50% de Somerville acabaram não optando por ter em maior escala e profundidade.

Somerville consegue se sair bem ou muito bem em boa parte dos seus 14 capítulos. O prólogo, não jogável, serve como uma boa entrada na atmosfera bucólica da vida cotidiana da família. Daí em diante, temos alguns bons momentos pareados com o excesso de quebra-cabeças. Quando o jogo resolve engatar a próxima marcha e pisar no acelerador, ganham o jogo e o jogador com uma obra mais concisa, que apresenta inúmeros dinamismos e que busca e pede pela sanidade em um contexto insano.

No fim, estejam atentos aos quatro finais. Devido ao progresso salvo automaticamente, é possível se realizar qualquer um dos finais, bastando apenas se retornar a um save point anterior. O game não entrega como realizar cada final, todavia, em meio ao caos, a calmaria poderá, literalmente, ajudar a ir se achando e realizando cada um dos finais.

Nota
Geral
7.0
somervilleApesar da primeira metade mais arrastada, a segunda parte de Somerville consegue “empurrar” o jogador dentro dos contextos inóspitos e caóticos que todo o jogo tenta passar. O visual bastante amplo do que acontece no mundo, a trilha-sonora etérea e a narrativa particular em um contexto extraordinário contribuem para que o game não se perca e consiga despertar a curiosidade.