A cada filme lançado, é regra: surge uma expectativa incomum e recorrente para que M. Night Shyamalan, diretor que foi abençoado e amaldiçoado desde o seu primeiro filme (O Sexto Sentido, 1999), apresente uma obra incontestável, cheia de camadas e que possua ao menos uma reviravolta que mexa com o público em seu clímax.
Ao longo de sua filmografia iniciada ainda nos 90, entre erros e acertos, podemos dizer que o saldo de M. Night é bastante positivo. Afinal, se em sua quarta década de atuação por trás das câmeras – e também à frente delas, visto que o diretor costuma fazer pontas em seus próprios filmes – ainda há certa celeuma por cada um dos seus lançamentos, é porque a metodologia do diretor segue funcionando.
Seguir funcionando, contudo, não é sinônimo de melhoria. Diz mais sobre certo lugar comum do que sobre um estilo que se renova e sempre apresenta novos elementos, ideias acachapantes ou roteiros que movimentarão a indústria.
Batem à Porta, seu mais novo suspense, e mais um filme que não foi baseado em um roteiro original, e sim é oriundo de um livro chamado O Chalé no Fim do Mundo, do escritor Paul Tremblay, está sendo lançado nos cinemas brasileiros no mesmo dia em que esta crítica é lançada. Assim como este novo filme, o longa anterior de M. Night, Tempo (2021), também é um roteiro adaptado.
Não dá para saber ainda se Shyamalan passará a roteirizar menos e adaptar mais, mas, há uma pergunta que pode ser feita a partir da obra que está sendo lançada: terá chegado o momento em que o cinema de Shyamalan abraçará inspirações no cinema de Jordan Peele? A pergunta é retórica e a resposta pode certamente ser melhor obtida ao se assistir Batem à Porta.
Embora a pergunta acima possa soar como uma heresia, não me entendam mal: não é. É normal que diretores se retroalimentem. E Shyamalan, distante das suas primeiras três ou quatro obras (O Sexto Sentido, Corpo Fechado, Sinais e A Vila), aqui, resolveu abraçar o contexto da geopolítica mundial em seu escopo mais macro para apresentar, a partir de pouco mais de meia dúzia de personagens, uma das suas histórias mais microscópicas e granuladas desde Sinais.
E esse contexto macro, que move a trama em escala micro, entende demasiadamente tal estrutura. Já nos primeiros cinco minutos de sua obra, com domínio e bastante elegância na direção de fotografia e direção do seu elenco, Shyamalan expõe a lógica de uma boneca russa entre o caçador e sua presa de forma dupla (animal, criança; criança, homem).
E se antevermos tal contexto, nos posicionando para além do início, logo veremos que a boneca russa ganha uma terceira camada, superior e global, mostrando que Shyamalan vai trabalhando dos pormenores às catástrofes de forma ordenada e consciente, amarrando bem o que se pode esperar a partir de uma trama desenvolvida em um contexto micro e macro.
It’s The End Of The World As We Know It (And I Feel Fine)
Na trama, um aparentemente pacato casal (Jonathan Groff e Ben Aldridge, ambos ótimos) e sua filha pequena (Kristen Cui, uma revelação e tanto), têm o seu cotidiano perturbado pela chegada de quatro pessoas estranhas que resolvem bater à porta do seu chalé, que fica no meio de uma floresta. Os quatros estranhos, que são liderados pelo cada vez mais versátil e talentoso Dave Bautista (da franquia Guardiões da Galáxia, Blade Runner 2049 e outros), Rupert Grint (o Ron Weasley, de Harry Potter) e Nikki Amuka-Bird e Abby Quinn, aparecem no lar da família porque são emissários de algo. Algo maior. Bem maior: é o fim do mundo como conhecemos, provavelmente.
Os invasores querem apenas uma coisa, que a família resolva qual membro dela será sacrificado para que o mundo seja salvo. E essa decisão não cabe aos quatro invasores. É algo que somente a família poderá decidir. Daí, que é apenas o contexto inicial, o filme vai se desenvolvendo.
A parte técnica de Batem à Porta
Cada um dos invasores, duas mulheres e dois homens, possui um bom desenvolvimento visual. Quando olhamos para o quarteto, vemos as suas essências muito bem traduzidas a partir da maquiagem, figurino e adereços.
Leonard, personagem de Dave Bautista, oscila visualmente entre um pastor e um professor. Com seus óculos e a camisa por dentro da calça, ele transmite uma paz que está muito ligada à profissão que exerce. Com isso, naturalmente, mesmo sendo um invasor, ele parece ser a figura mais pacífica entre todas e todos. Não à toa, sua camisa é da cor branca.
Redmond, o personagem do ruivo Rupert Grint, curiosamente, é uma colcha não de retalhos, mas, de recados: veste uma roupa vermelha, possui ‘Red’ em seu nome, opera com base na violência e na força e, vejam só, um dos seus nomes está ligado à uma figura importante que fez parte central no governo de Donald Trump. Ou seja, parece ser o perigo em pessoa.
Adriane é a mais emocionalmente instável, indo da compreensão à agitação com facilidade, e também trazendo momentos emotivos a partir de algumas revelações. Sua cor é justamente azul (que simboliza a tristeza).
Já Sabrina, única que age dentro do chalé com base no que ela foi antes da invasão, usa amarelo, que remete aos tempos pretéritos, ou seja, ao passado que ainda lhe é presente.
Para além dessa retratação visual dos personagens e dos seus figurinos, toda abordagem visual dos planos e enquadramentos é interessante. Por vários momentos, o filme relega os antagonistas à enquadramentos que os achatam e encolhem, cortando-os e subjugando-os, como uma forma justificar ou mesmo “apoiar” a violência inerente aos quatro porque são figuras que talvez não queiram fazer aquilo, e que já estão sendo punidas apenas por terem que fazer. São decisões que enriquecem o trabalho técnico do filme.
Em outro momento, também excelente, é preciso se mostrar os quatro em cena em um momento mais impactante. E aqui, o filme nos dá de bandeja a interpretação de quem estes são e representam.
É um novo Shyamalan?
Embora parte da aura que acompanhou o diretor nos primeiros filmes de sua carreira ainda se mantenha com base nos fãs mais ardorosos, a verdade é que diretor de 52 anos precisou aprender a se reinventar. Saíram de cena os finais apoteóticos em certos filmes e a calibragem foi sendo distribuída e espaçada ao longo da duração das suas obras. Assim, no lugar de apresentar uma obra-espetáculo que fazia o público ansiar pela reviravolta e não se concentrar como esperado nos atos anteriores, Shyamalan reinventou-se.
Embora tecnicamente eficiente e permitindo com que Dave Bautista apresente mais uma interpretação que choca por não apresentá-lo enquanto apenas e tão somente uma montanha de músculos, Shyamalan não entregou nem de perto o seu melhor filme.
Batem à Porta funciona melhor quando Shyamalan resolve se desligar das reviravoltas. Entretanto, neste filme, parece ter faltado um desfecho macro para o contexto micro.