Jonathan, Jardani Jovonovich e Baba Yaga/Bicho-Papão são alguns dos nomes que John Wick (Keanu Reeves) é comumente chamado ao longo dos, até então, quatro filmes da saga do matador elegantemente bem vestido que deu um excelente novo respiro à carreira do eterno Neo (Matrix).

E se falo de Matrix em um texto sobre John Wick é porque esta segunda quadrilogia da carreira de Reeves (com o próprio Matrix tendo recentemente atingido tal contagem), é porque a saga do assassino sob encomenda e com a morte constantemente sendo exigida não se contém dentro de si em relação à própria mitologia criada pelos filmes e que acentuou-se ainda mais a partir do segundo filme, quando se percebeu, diante do sucesso do longa original, a mina de ouro que John Wick, a cúpula, o hotel Continental e as regras e cordialidades entre matadores poderiam render financeiramente.

Por tudo isso, é preciso se deixar bastante óbvio algo que nem sempre é percebido desde o segundo filme da saga: John Wick, seu mundo, seus personagens, ações, tramas e demais acontecimentos não operam sob a lógica da realidade terrena. Assim, não adianta buscar verossimilhança ao dizer que certas cenas e acontecimentos não ocorreriam e nem ocorrem na vida real. Ora, estamos falando de uma obra de ficção e, além disso, há, sim, uma lógica no universo johnwickiano.

A lógica consiste em levar em consideração as regras que vão sendo estabelecidas pelos personagens, seus dizeres e ações. Se John Wick lembra um Batman com a sua capa, não se engane, é proposital – isso sem precisar entrar no terreno de que há, neste quarto filme, um Coringa, um Pinguim e até mesmo um Ra’s al Ghul e a sua própria Talia al Ghul, filha de Ra’s na mitologia do homem-morcego.

Só que estamos falando de John Wick, que não se contenta em apenas desenhar, em sua própria mitologia, o universo do Batman. Aqui, Matrix entra em campo e há momentos específicos que rendem homenagens à franquia mais famosa de Keanu Reeves. Nem falo isto por conta da participação sempre agradável do eterno Morpheus, o ator Laurence Fishburne, que em John Wick 4 dá vida ao personagem King, o dono do submundo johnwickiano. Há cenários, falas e outros pormenores que vão prestando suas devidas homenagens aos filmes das irmãs Wachowski.

Há milhões de motivos para matar John Wick

Os acontecimentos em que Wick foi se envolvendo, principalmente a partir dos atos no filme anterior, puseram um preço ainda maior por sua cabeça abandejada. Há centenas de assassinas e assassinos perigosíssimas(os) dispostas(os) a eliminar Jardani e reterem para si os milhões que o Marquês de Gramont (insanamente interpretado por Bill Skarsgård) está oferecendo.

E se não bastassem os matadores “comuns”, o Marquês tratou de se cercar com figuras inigualavelmente letais. Entre as novas e bem vindas adições ao universo, temos o ator e lutador chileno Marko Zaror, o forte capanga, guarda-costas e armário humano Chidi, que carrega um subplot próprio ao longo do filme ao se tornar o principal rival de uma específica dupla que também faz sua estreia na saga: o Rastreador (Shamier Anderson) e o seu selvagem e doce cachorro. O Rastreador, além de ser um personagem que também possui sua própria história desenvolvida durante o filme, certamente poderá se tornar o personagem principal ou um dos principais em algum spin off da saga, que já sabemos que contará com ao menos duas produções: a série Continental, sobre os hotéis que abrigam os assassinos e os seus negócios, e também Ballerina, filme protagonizado por Ana de Armas (Blonde, Entre Facas e Segredos) e Norman Reedus (o Daryl de Walking Dead).

Atenção para a lista a seguir: John Leguizamo (Aurelio), Willem Dafoe (Marcus), Common (Cassian), Ruby Rose (Ares), Peter Stormare (Abram Tarasov), Halle Berry (Sofia Al-Azwar), Mark Dascacos (Zero), Anjelica Huston (personagem A Diretora), Franco Nero (Julius) e mais. Os outros três longas, entre outras atrizes e atores, contaram com as pessoas acima. Como, então, superar ou ao menos igualar três obras anteriores que tiveram um carrossel de talentos e personificações tão gritantemente eloquentes, funcionais e sofisticadas? A resposta é simples, embora complexa:

Donnie Yen!

O lendário ator asiático responsável pela (até então) quadrilogia Ip Man, Blade 2, Rogue One: Uma História Star Wars e por outros amados personagens e filmes, traz todo o seu carisma e a sua persona corporal para despontar como um dos personagens mais queridos do universo johnwickiano. O desenvolvimento que Caine (Donnie Yen) recebe diz muito sobre o talento e o tamanho do ator. Não à toa, o filme rende-se a Yen e entrega, também a ele, a cena mais emocionalmente impactante de todos os quatro filmes.

É uma pena, contudo, que estejamos falando de atores – Yen e Reeves: 59 e 58 anos, respectivamente – que já alcançaram uma idade que já não os permitem, sem falsear movimentos a partir da aceleração dos quadros e do uso de dublês, com que vejamos, ambos talentosos com artes marciais, mais cenas com o rosto de ambos enchendo a tela em momentos cruciais da pancadaria. Por sorte, a direção, a fotografia e a equipe de coordenação de lutas sabem mascarar muito bem as cenas e o que fica parecendo é que estamos vendo ambos em 100% das suas cenas, felizmente.

Há outros milhões de motivos para amar John Wick

É óbvio que Donnie Yen, sozinho, não faria de Baba Yaga o filme que recém estreou. Há peças centrais que também fazem com que o quarto filme brilhe e se renove. Se, do segundo longa em diante, já havia ficado claro que John Wick era uma saga moderna que se apegava ao passado para construir sua própria filosofia de ação, com John Wick 4, o personagem e as cenas emulam grandes astros do cinema mudo como Buster Keaton, Harold Lloyd e Charles Chaplin para fincar suas raízes em diretores e gêneros consagrados do cinema do século 20, como o gênero épico e o western, através de Lawrence da Arábia e certos aspectos do cinema de Sergio Leone, o midas dos filmes de faroestes.

Antes de entrar em tais aspectos, voltemos ao personagem John Wick como uma figura cada vez mais silenciosa, porém, corporalmente gritante. Tal silêncio, inclusive, certamente casa com a proposta derradeira do encerramento do quarto filme. Sem spoilers, porém.

As homenagens ao cinema mudo eram fatores tão ululantes que John Wick 2, sozinho, já fazia questão de reforçar isso trazendo aspectos, evocações e homenagens aos três grandes citados: Lloyd, Keaton e Chaplin.

Como não lembrar das cenas de Buster Keaton nas fachadas dos prédios durante as cenas de correria e perseguição do segundo filme? As imagens são do filme Bancando o Águia (Sherlock Jr. é o título original), de 1924.

Quer ainda mais obviedades? O cartaz do segundo longa é uma adaptação de uma famosa imagem de Two-Gun Gussie (1918), curta-metragem estrelado por outro grande astro das peripécias físicas no cinema mudo: Harold Lloyd.

Ainda no mesmo segundo filme, outro exemplo básico é o excelente conflito na sala de espelhos, que homenageia O Circo (1928), de Charles Chaplin.

John Wick é cinema, mas é tão calculadamente perfeito que poderia ser balé. Ou ópera.

Temos a sorte que a obra seja fílmica porque aí, felizmente, podemos ver tudo agindo em conjunto para que a catarse surja constantemente pelo filme, amarrando trilha, atuação, direção de arte, fotografia, coreografia, o lirismo das balas reluzentes e a sopa de homenagens que o filme presta ao cinema em geral enquanto expande sua mitologia leve ou profundamente.

Dentro do gênero da ação, John Wick beira o gênero épico

Outra lista, atenção: Hardcore: Missão Extrema (2015), Atômica (2019), Anônimo (2021), Kate (2021), Trem-Bala (2022), Noite Infeliz (2022) foram e são filmes que, em maior ou menor escala, se aproveitam do fenômeno John Wick para criarem um estilo gráfico e de ação com tons próprios. É como se os quatro filmes estrelados por Keanu Reeves gerassem filhas e filhos que alimentassem a própria indústria. E se os filmes citados não são conhecidos por nome, basta lembrar que são longas estrelados por atores e atrizes consagrados e premiados: Charlize Theron por Atômica, Bob Odenkirk por Anônimo ou ainda Brad Pitt por Trem-Bala.

Não dá para não confirmar a influência que o personagem de Keanu Reeves possui. Resta saber, ainda, se os ovos chocados pelo universo de Jonathan, Jardani Jovonovich ou Baba Yaga também retroalimentarão a si mesmos com a série Continental e o spin off Ballerina.

Um olá e um adeus

Não poderia encerrar o texto sem antes lembrar de dois atores: Scott Adkins, o britânico ator de artes marciais que viveu, por anos, na surdina e nas sombras por ter sido considerado um sub-Jean-Claude Van Damme – e que chegou a estrelar continuações de filmes famosos de Van Damme diretamente para serviços de locação digital ou física – e que aqui, ora, propositalmente desconectado da sua forma física, veste uma carapuça e recebe uma maquiagem que lhe garantem, por baixo, mais uns 100 quilos e entrega uma performance megalomaníaca, cômica, despretensiosa e que surte muito efeito mesmo quando divide uma cena com atores como Donnie Yen e Keanu Reeves.

Por fim e não menos importante, temos Lance Reddick

O quarto filme é tão certeiro que, mesmo tendo sido filmado muito tempo antes do falecimento do ator, ocorrido no último dia 17 de março, consegue prestar ao menos duas ou três homenagens ao ator através do seu personagem, o concierge Charon.

Descanse em paz, Lance.

Nota
Geral
10
john-wick-4-baba-yagaHá cada cinco, dez ou quinze minutos, se prepare para vivenciar muitas emoções, arregalar os olhos e abrir sinceros sorrisos com John Wick 4: Baba Yaga. O novo filme é uma injeção de energético com propulsores na indústria, mais especificamente no gênero dos filmes de ação, tão escanteados quando não são abraçados por gente de renome na meca do cinema. Mesmo após quatro filmes, a franquia segue ganhando gás e mostrando que Keanu Reeves se juntou com grandes astros do cinema, no presente, para olhar para o passado e contar sobre o futuro dos filmes de ação e artes marciais.