Eu poderia ter escrito esta análise muito antes, mas Biomutant é como um daqueles discos de um bom artista, mas que é difícil de processar pela primeira vez, mas a cada vez que você escuta, ajuda a separar qualidades de escorregos e no fim ter uma aceitação que sente-se que seja justa, na proporção correta.
Expectativa versus realidade
Por vir de uma produtora que financia títulos médios a baixa qualidade, Biomutant levantou expectativas por causa de sua proposta animadora e que desperta desejo após a mínima olhada que seja em seu gameplay. A temática também é um twist corajoso num mundo atual, cheio de jogos fincados com o pé na realidade medieval ou guerrilheira.
Invés disso, temos aqui uma homenagem a obras que retratam o kung fu, espelhando através do jogo não só o estilo marcial como o tom dos diálogos, cheios de pseudo sabedoria e às vezes até um abstratismo quase inebriante em seu texto geral.
Biomutant é exemplo de que se você é um desenvolvedor de jogos que não é nem americano, nem japonês, você deveria adaptar alguns pilares de filosofias no seu produto. Um exemplo de uma produtora que antes de lançar faz questão de ter certeza de que seu produto se enquadra, é a Ubisoft.
Nós como consumidores nos fixamos em esperar pelas mesmas soluções de gameplay de sempre. Control, da Remedy por exemplo (um jogo “estrangeiro”), é estranhado por boa parte de jogadores que não absorvem por completo a cultura videogame em detalhes. Por causa disso, para essas pessoas, o jogo não passa de um shooter genérico e “doido”.
Ideias no macro
Seu personagem, que não tem nome, é aquela folha de papel que apenas ouve mas é capaz de responder a árvores de diálogos sem ativamente colocar sua voz para fora. Essa árvore é parecida com o que vemos em Mass Effect ou Elder Scrolls, com linhas que adentram na exploração opcional de personagens ou lore e maniqueísmos em seu sistema de karma – que não se constrói organicamente’ através de ações, como chutar galinhas em Fable, mas sim através dos próprios diálogos.
Falando em diálogos, Biomutant traz um sistema parecido com o game Bastion, em que um narrador acompanha sua jornada, dando pitacos em muitas coisas que o jogador faz, além de narrar o próprio roteiro. O grande problema que entra em detrimento aqui no jogo de furries, é que ele é um jogo enorme e de mundo aberto, fazendo com que tudo e cada coisa que se faça, o narrador queira comentar, desde uma paisagem, a seus combos.
Para piorar, ele traduz a conversa de seu personagem com outros, esperando cada linha de diálogo ser iniciada pelo NPC primeiramente, o que deixa o processo extremamente arrastado, para depois sim começar a dizer o que o personagem quis dizer. Fora que, o narrador entra como um interlocutor na parada, deixando às vezes tudo confuso.
Pelo menos no começo. A parte mais prática desse erro, além de ser irritante, é que sua paciência se esgota e nessa de adiantar o gibberish todo, alguns diálogos relevantes podem ser acidentalmente cortados. Immortals: Fenyx Rising conseguiu fazer bem esse balanceamento enquanto se assume como um jogo de mundo aberto, mas Biomutant parece ter sido testado pro 10 minutos nesse departamento de narração.
Existe no menu a opção de diminuir (e até aumentar!) a frequência dos comentários, mas sente-se que não é o suficiente. E foi assim que tivemos que analisar Biomutant. Por sorte, estamos prestes a ganhar um patch que deixa o jogador desligar por completo o narrador. A parte boa é que, tal como o Cid Moreira, o narrador deste jogo deve ter ganhado muitos salários nórdicos.
Belo mundo
Para não entrar num combo de tentativas falhas, vamos entrar no melhor mérito do jogo, que é o seu mundo. Através das décadas de jogos modernos, sempre senti que jogos com temática mais crescidinha não se arriscaram muito em certos departamentos. Biomutant possui um esquema de cores super saturado que trabalha em favor do resultado final, deixando-o artisticamente lindo de se ver.
Trata-se de uma terra que a natureza recobrou da humanidade, conforme a trama revela. Porém ao contrário de Immortals: Fenyx Rising, não soa como um mundo abandonado habitado apenas por inimigos. O mundo de Biomutant é cheio de vilarejos feitos de palha e madeira, e as pequenas cidades e postos de beira de estrada que os humanos construíram servem apenas de zona para arruaceiros espreitarem.
Cada personagem parece ter algo a dizer e isso já compõe inclusive uma das várias coisas que o jogo propõe fazer mas não realiza bem e por completo. Na ponto história, o jogo parece querer ir longe, mas no fim das contas não dá para comprar muito, por causa da reunião de coisas incômodas. e qualquer forma, é muito interessante que o jogo traga uma temática bastante ecológica.
Os animais de ontem, hoje são mutações por causa da poluição que o homem trouxe e o aniquilou. Ponto. Ok, há mais que isso. É dito que mesmo depois do fim do mundo (para a humanidade), existe a profecia de que o mundo realmente irá acabar para todos, a não ser que os povos se unam para derrotar forças anormais no mundo de hoje, que estão devorando as raízes da árvore da vida, centrada no mapa do mundo.
De interessante, temos o fato de que nada é garantido, ao mesmo tempo que você pode tomar postos de tribos rivais e escravizá-las ou torná-las sua tribo. A parte prática disso não soa muito tangível, mas ainda tá valendo a brincadeira mental.
A balança quer pender
Voltando aos grandes problemas de verdade, temos as primeiras horas do jogo, que podem enganar o jogador, fazendo pensar que Biomutant é um jogo plenamente linear querendo enganar com partes levemente abertas. Isso junto da mecânica de terreno tóxico torna o jogador mais impaciente e nessa altura, quem estava na versão PC por exemplo, já era hora de pedir o refund.
Porém depois disso, o mundo aberto apresentado chega a espantar tamanho o contraste, se tornando de novo, a melhor atração que o título pode oferecer. Aí entra o fator Breath of the Wild. Uma parcela, na verdade. Pude ir em qualquer direção e encontrar distrações variadas, como passagens subterrâneas e casas abandonadas.
E para quê eu estaria vagando por aí? Bem, o sistema de loot do jogo é impressionantemente charmoso e vasto, com peças aos montes para se equipar. São chapéus, capacetes, roupas, espadas, armas de projétil, acessórios – cada um com uma gama espantosa de visuais diferentes.
Uma pena que senti que uma vez que achei algo no começo do jogo, foi difícil que outras peças escondidas dentro do grande mundo soassem como uma oferta irresistível para eu usar. É como achar uma arma com os melhores stats em Borderlands e passar o jogo todo sem achar mais nada a altura, segundo os próprios números do game.
O sistema de batalha talvez seja o ponto que mais fez a natureza do mundo aberto de Biomutant, ruir conforme as horas se passavam. Tão divertido quanto um sistema de batalha de jogo licenciado tipo Piratas do Caribe ou LEGO, aqui, neste game esse sistema não se sustenta por tantas horas.
Para começar, não dá pra sentir peso em nada do que se faz: nem nos golpes marciais, nem na parte de tiro, mesmo com o irresistível salto Max Payne presente, nem as charmosas onomatopeias contidas dentro das dezenas de golpes especiais. Seu personagem também é pequeno o suficiente para que a gente entenda todas as vezes que diabos estão fazendo, atrapalhando o “tell” dos golpes inimigos para o seu parry.
Como em jogos Batman ou Homem Aranha, um sinal em cima da cabeça dos inimigos surge para indicar golpes certeiros, e o parry se faz necessário, mas o tamanho de alguns inimigos vai fazer com que esses sinais fiquem fora de cena. Nessa altura, a batalha já virou uma bagunça qualquer, porém como batalhas básicas, o game se segura bem. Uma pena que esse segurar bem esticado em dezenas de horas não vai colar, a não ser que…
De novo, seu mundo colorido, exageradamente vívido te cative, com seus biomas super diferenciados, e por isso, sua leniência esteja de ótimo humor por hoje. Porém, definitivamente não é desses jogos que você joga “viciadamente” por horas e horas, só querendo mais e mais dele, como Resident Evil Village é, por exemplo.
Por fim, Biomutant foi analisado num PlayStation 5, usando a retrocompatibilidade. O debate em cima dos 1080 estabelecidos para o console é uma estupidez bizarra, pois jogar o jogo em 60 frames por segundo, com uma direção de arte que será a coisa melhor lembrada do game em 2021, é o que importou. Para debates sobre as outras versões e mais comentários sobre o lançamento, ouça o nosso podcast mais abaixo.