Entre j-pop, casas mal-assombradas e muita tensão,
Ghostwire: Tokyo é prato cheio e repetitivo para fãs de horror

Em certo momento de Ghostwire: Tokyo, uma procissão fantasma interrompe o já tenso clima urbano, noturno e chuvoso de Shibuya, local em que se passa o game. Avistados desde longe pela forma como tudo vai escurecendo para apenas iluminar na esquina em que se dobra ou no horizonte, os seres espectrais, em lenta marcha, caminham como se estivessem em um sombrio carnaval dos desalmados.

Esse momento, que não se repetiu muito durante as minhas quarenta horas até terminar o mais novo game da Tango Gameworks, certamente é um dos seus pontos altos. Mediante o armamento etéreo usado (os “tiros” e rajadas espirituais disparados pelas mãos de Akito Izuki, o protagonista), o clima de pavor, durante a jornada, contudo, muitas vezes é quebrado pela necessidade do jogador de, para fortalecer o seu personagem, continuamente ter que ficar, em todo o mapa do jogo, a esmurrar ou disparar em coisas pelo cenário para recarregar a Tecelagem Etérea (seus ataques de vento, água e fogo). Por coisas, entenda-se: carros, bicicletas, blocos de pedra, semáforos, latas, placas, pedras e por aí vai. Tudo que brilha pode ser esmurrado com o stick direito do seu joystick ou a tecla correspondente dos teclados, no caso dos jogadores de PC.

Uma procissão demoníaca para na esquina. O que você faz?

A insistência de Ghostwire em, assim como as almas dos inimigos arrancadas por Akito, arrancar o jogador da imersão apavorante a que se propõe o jogo constantemente, principalmente nas primeiras horas de gameplay – quando o personagem é mais suscetível a ficar sem a munição etérea – prejudica o fator imersivo por afastar o clima sombrio em detrimento da necessidade mecânica de se ter a quantidade de munição adequada para se recomeçar as andanças pelas ruas e vielas da cidade do jogo e então gastá-las para, logo em seguida, reabastecer todas e nesse loop ficar por pelo menos metade da jogatina até que se seja forte o suficiente para se investir em upgrades que permitam ao jogador a recuperação da munição etérea de forma menos, digamos, cansativa e cíclica.

Falando em imersão, aos jogadores mais atentos, há algo inusitado logo no início do game, seja no menu inicial, sejam nos primeiros minutos de gameplay. Como é de praxe para muitas e muitos, é normal se ir ao menu para se ver e possivelmente alterar as configurações. Seja para se colocar o jogo em nosso idioma, seja para deixar no idioma original (no meu caso, joguei com a dublagem japonesa e recomendo) com ou sem legendas, e que podem ser diminuídas ou aumentadas, seja para retirar huds (heads-up display, os ícones visuais que se encontram na tela para indicarem algo ao jogador: barra de energia, de vida, a bússola, a missão ou sidequest em que se está e mais). No entanto, foi ao mudar a aba de configurações de vídeo que me espantei com o que vi: Ghostwire possui nada menos do que seis opções de qualidade gráfica. E não destaco isso como algo positivo. Somente através das configurações pré-jogo não dá para se ter uma ideia se a configuração escolhida ficará melhor para a sua televisão ou monitor, ou ainda se será possível usar toda a potência que o seu Series S/X, Playstation 5 ou PC lhe permite. Com isso, antes mesmo de embarcar na imersão que o jogo me pedia já em seu início, me vi tentando acertar e adequar a melhor das seis configurações. Prezo pela imersão que uma obra me oferece e inícios são momentos bem adequados para imergir o jogador em um jogo, coisa que, em Ghostwire, logo em seu início, de certa forma, me foi negado.

Já a questão de coletar munições, embora compreensível até certo ponto, é um problema um pouco menor diante de um outro que incomoda um tanto mais: o mapa de Shibuya emula os piores mapas desnecessariamente extensos em tamanho e repetição dos jogos da Ubisoft. Em se tratando dos colecionáveis, e como dito acima, não há nada que não lembre os mapas dos últimos três jogos da franquia Assassin’s Creed (Origins, Odyssey e Valhalla) Serve também para os jogos da série Far Cry, também da Ubi. À medida que o mapa vai abrindo, um acúmulo inumerável de ícones vai surgindo. Até que algo curioso acontece: o acúmulo de ícones é tamanho que, em certas localizações do mapa que acessamos, um ícone acabando ficando em cima do outro, forçando o jogador a apertar um botão do seu controle para alterar os ícones. Em um mapa! Ou seja, a disposição de coisas para se fazer em Ghostwire é tamanha que os ícones vão criando uma desnecessária subcamada no mapa. Em contrapartida, certas áreas são marcadas com uma enorme bola amarela só para que, ao chegarmos nela, tudo que encontraremos será um mero item colecionável.

E já que falamos sobre os itens colecionáveis, seu excesso – e falamos aqui de um jogo de excessos com alguns excelentes poucos excelentes momentos – traz algo incomum: os itens colecionáveis em nada acrescentam à história que é jogada. A lore do jogo não é incrementada a partir de tudo que é coletado. É você, jogador, que ganha ao sair coletando, pois passará a saber um tanto mais sobre a cultura nipônica. Assim, praticamente não há acréscimos aos rumos narrativos. Chegaremos ao fim do game apenas sabendo mais coisas ou menos coisas sobre aspectos (certamente relevantes, mas não para o Ghostwire) do Japão.

Contudo, na Shibuya de Ghostwire, há um excesso que se torna prazeroso de se coletar. Curiosamente, esse é integrado à narrativa e mais especificamente à evolução de Akito: as almas/espíritos que podem ser libertadas através da purificação delas com o katashiro, objeto cerimonial e tradicional da cultura japonesa que é usado para substituir alguém que não tem/teve mais como estar presente, e que funciona como uma interessante mecânica de jogo. Apesar da repetição incansável no uso do katashiro, afinal, são 240.000 (sim: duzentos e quarenta mil!) espíritos que devem ser purificados, essas ações, ao contarem com múltiplos contextos para a execução da purificação, incluindo aí as opções de se esgueirar, descer, subir, entrar ou sair por inúmeros locais da cidade, é satisfatória porque existe todo um plot paralelo apenas para ser feito com elas. A coleta dessas almas permite ao jogador acessar cabines telefônicas espalhadas pela cidade para trocá-las por experiência ou pelas meikas, o dinheiro do jogo. E ainda saber mais detalhes da história e da situação e o paradeiro da irmã de Akito, que conduz o protagonista pela história. Apesar de “só” ter coletado cerca de cento e oitenta mil almas até finalizar o game, essa aventura de coletar é bastante positiva ao jogo. Ponto para Ghostwire.

Dando continuidade ao melhor de Ghostwire, em certo momento, que em minha trajetória com o jogo se deu da 10ª para a 11ª hora, há uma gratificante surpresa. Após o encerramento de um dos seus seis capítulos, a narrativa passa a perna no jogador e o força a usar com mais cadência e cuidado, a única arma não totalmente espiritual e etérea de Akito: o arco. Nesse momento, todo o clima de pavor que jogo ensaiou aprofundar de vez é acionado e reforçado ao fazer com que Akito atravesse cenários em um misto de stealth, disparos cuidadosos (são poucas flechas), a corrida desenfreada por puro medo e o andar agachado para atravessar trechos ainda mais perigosos. Tudo isso em um clima mais tenso, com uma música mais pesada e a incrível sensação de se perder tudo e agora ter que se virar com o mais básico dos seus instintos, habilidades, itens e armas.

Em momentos assim, que voltam a se repetir apenas ocasionalmente, Ghostwire cria um clima de horror que fortemente o aproxima de obras fílmicas bastante populares no oriente, como o filme Pulse (Kairo, no original), do diretor Kiyoshi Kurosawa. O trecho relatado acontece na própria cidade. Já em ambientes internos, como em determinadas residências espalhadas em Shibuya, há elementos que lembram o terror domiciliar do filme Ju-On (mais conhecido por O Grito). E para destacar uma última referência cinematográfica, há um certo chefe de capítulo, certamente o melhor do jogo, juntamente com a ambientação da arena da batalha em que se dá o embate, que logo nos faz lembrar das tensas perseguições e o mortal esconde-esconde entre a Tenente Ellen Ripley (Sigourney Weaver) e o xenomorfo no clássico Alien – O 8º Passageiro, de Ridley Scott. Como Ripley, precisamos de toda a atenção e cuidados possíveis para que seja possível vencer uma criatura certamente mais forte e letal que Akito. Dos chefes finais de cada capítulo, esse é o que melhor se destaca por um conjunto de fatores que vão além da própria mecânica de se esconder e fazer bom uso do silêncio de forma arquitetada para se ser sorrateiro. É a trilha-sonora que ajuda a potencializar ainda mais a atmosfera da batalha, a fotografia que vai ficando mais sombria e a direção de arte que vai decompondo e enferrujando o cenário: tudo isso conspira em sintonia para que tal momento seja, talvez, o ápice do jogo.

Em se tratando de detalhes mais técnicos do gameplay, o jogo conta com a tradicional árvore de habilidades quase que obrigatória em toda e qualquer obra que emule aspectos de um RPG. Dessa forma, as Técnicas Espirituais ajudam a incrementar os seus poderes de vento (a matéria verde), água (a matéria azul) e o fogo (a matéria vermelha). Além delas, há ainda o poder da sintonia, que acontece quando Akito e KK (a falante voz que garante os poderes do personagem principal) acessam uma simetria espiritual que permite ataques mais poderosos durante preciosos segundos. O arco, já mencionado, é pouco ou quase nada usado. Eu mesmo, só usei quando fui obrigado pelo jogo, e não por opção, e isso reforça o fato de o jogo ter certos excessos e se perder na maneira e no tempo de usá-los. Cada um dos disparos etéreos possui ainda um ataque carregado que é muito mais útil que cada disparo isolado, além de evitarem gastos de munição. Por fim, há ainda o uso dos talismãs, que podem ser conquistados, achados ou comprados. Cada qual permite algo: um prende inimigos em um domo de energia etérea, outro cria ataques flamejantes, mais outro cria úteis arbustos que ajudam a atravessar certos locais mais perigosos e assim vai. Infelizmente, foram recursos também de pouco uso, com exceção do talismã que permite aprisionar inimigos.

Objetivamente um dos jogos mais bonitos do ano.

Os inimigos possuem um problema de IA que faz com que eles ataquem apenas em área. Se o jogador se distancia um pouco dos inimigos, e eles seguem Akito, apenas mais alguns metros ainda oferecerão algum perigo, pois os inimigos logo virarão fumaça espiritual e retornarão ao lugar de origem. Em vários casos, resetam-se os ataques já recebidos, como se eles renascessem. E para desbalancear o clima de pavor na hora em que se enfrentam os inimigos, o jogo permite com que músicas cantadas, e que podem ser conquistadas durante o jogo, sejam colocadas para tocar repetidamente. Com isso, enfrentar espíritos torna-se mais fácil ao se ter como trilha algumas músicas eletrônicas e muito j-pop.

Quanto à customização de Akito, como o jogo é em primeira pessoa, não havendo tantas cenas em terceira pessoa (as que existem são as cenas pré-renderizadas), existe pouca ou nenhuma função para certos coletáveis que dificilmente veremos ou prestaremos atenção durante as CGIs, como relógios de pulso, pulseiras de mão, sapatos e tênis. Existem ainda os uniformes totalmente padronizados, alguns até de outras franquias importantes da Bethesda, que publica o jogo. E esses, embora também se restrinjam às cenas em computação gráfica em que o jogador não possui controle sobre Akito, são, em geral, bonitos trajes completos.

Para os jogadores do Playstation 5, o feedback háptico do uso dos gatilhos ao se atirar se tendo munição, capturar espíritos ou mesmo para se atirar quando se está sem munição traz excelentes formas de se explorar cada reação dos gatilhos L2 e R2 na hora de pressionar cada um. O tiro, que é sentido um a um, talvez não impressione tanto. Já a mecânica de capturar almas garante com que o processo de captura seja bastante dificultado pelo gatilho querendo retornar ao ponto de origem enquanto o dedo pressiona com mais força. O mesmo acontece ao se enforcar os inimigos em modo stealth. Quando não se há munição para os disparos etéreos, o gatilho fica mais duro e travando no dedo do jogador. São detalhes que trazem incrementos satisfatórios ao ato de jogar.

Encerro o texto afirmando que no desenvolvimento de Ghostwire: Tokyo, para quem lembra, a Tango Gameworks, que é liderada pelo icônico Shinji Mikami, perdeu uma das suas cabeças pensantes e principais responsáveis por GT: Ikumi Nakamura, diretora criativa do game. Com a sua saída, constata-se tristemente que o jogo ganhou rumos inesperados que ocidentalizaram uma obra que surpreende e é melhor quanto/quando mais ela se orientaliza.

Confere o nosso podcast que unclui muito mais sobre o game!

 

 

Nota
PONTUAÇÃO GERAL
6
ghostwire-tokyo-e-prato-cheio-e-repetitivo-para-fas-de-horror-essa-e-a-nossa-analiseGhostwire: Tokyo é um bem vindo survival horror em primeira pessoa que, ao se permitir excessos sem amarras, peca por não estabelecer certos limites e, sempre que investe em uma atmosfera mais minimalista, de pura claustrofobia e com um pavor reinante, se sai melhor do que consegue ser no resto do tempo.