Por essas horas, é provável que um dos grandes mistérios da humanidade, ao menos no universo de quem joga videogame, é se você, jogador, poderá, em Stray, ‘pet the dog’, no caso, o gato, com o seu próprio gato.
Como sabemos, em outras ocasiões, a internet foi povoada de protestos pela introdução desta carinhosa mecânica em um ou outro jogo. Brincadeiras à parte, Stray já nasceu hypado por ter, enquanto protagonista, um gato. A receita do sucesso estava pré-pronta. Mas aí, o que nos resta saber é se o jogo, recém disponibilizado, daria conta de todo o hype gerado.
Stray, que foi lançado em 19 de julho, foi publicado pela Annapurna Interactive, e desenvolvido pela BlueTwelve Studio, estúdio dos diretores Koola e Viv, que são do sul da França. Ainda em outubro de 2015, quando Stray era apelidado de ‘HK Project’, e a BlueTwelve era composta apenas por Koola e Viv, eles lançaram um blog para atualizar as pessoas que estivessem interessadas em acompanhar o desenvolvimento do jogo.
Espaço esse que também servia para arrecadar fundos para o desenvolvimento do outrora chamado ‘HK Project’. Ao final de 2017, a equipe havia crescido e já contava com cinco pessoas. Dado o escopo do jogo, que é uma indie com duração média entre 6 e 8 horas, sabemos que não é o ideal, mas já vimos casos de “equipes” de uma só pessoa para desenvolver um jogo inteiro.
Quatro anos depois, em agosto de 2021, Koola e Viv buscavam um programador de gameplay sênior para, junto com o restante da equipe à época, finalizar, depurar e otimizar vários recursos de jogabilidade (controles, IA, interface do usuário e elementos de jogabilidade). O blog, para quem estiver curioso, ainda pode ser acessado.
Em Stray, algo aconteceu com o mundo. Aliás, algo está sempre acontecendo com o mundo. E, embora a trama não seja a mais original já criada, visto que nem precisa ser, a maneira como vamos nos aprofundando mais e mais pela história, como se o jogo deixasse um rastro de ração a cada esquina, viela, buraco ou construção, acaba nos guiando para, além de prosseguirmos com a gameplay, conhecermos um pouco mais sobre aquele mundo – ou mundos, mais à frente, e sem spoilers – e seus curiosos personagens.
Passado um pouco da história do desenvolvimento do que veio a ser chamado de Stray, vamos à narrativa do jogo em si. Em termos de história, ainda que não haja nada que já não tenhamos visto na literatura, cinema, séries ou mesmo em outros jogos, aqui, não se trata de uma figura detetivesca andando por uma megalópole cyberpunk e neo-noir (Blade Runner), muito menos uma figura esguia e de sobretudo perambulando por dutos de ar e realizando upgrades cibernéticos em si mesmo (Deus Ex).
Na realidade, Stray não é diferente das descrições feitas acima. Sua cidade intramuros, guardadas todas as proporções de escopo, já que estamos falando de um jogo indie, e não um Triple A, nos lembra bastante alguns ambientes vistos no recente Cyberpunk 2077. Stray não é como nenhum destes acima, e ao mesmo tempo tem um pouco de cada e também se retroalimenta de outras valiosas referências.
Falando sobre a lógica das distopias cyberpunks, Stray se posiciona muito bem diante delas. Para além das luzes neon, da noite chuvosa e do vapor subindo dos bueiros, sabe-se, pela estruturação arquitetônica de um universo voltado ao cyberpunk, que não se é um se, verdadeiramente, ignora-se a logística de divisão de classes que separam os que mais podem dos que podem menos. Assim, não à toa, a geografia do gameplay e a história de Stray nos levam sempre do mais baixo ambiente até o mais alto.
E mais: como em um verdadeiro universo cyberpunk, nos níveis (urbanos e sociais) mais baixos, esbarramos com todos os outsiders do sistema (bêbados, criminosos e demais personagens e elementos que sempre estão à margem do sistema predominante). Em tal ambiente caótico, aprofunda-se a pobreza extrema enquanto acentuam-se os conflitos sociais mais graves (algo que Deus Ex: Humam Revolution reproduz muito bem, por exemplo).
Nos níveis (urbanos e sociais) mais altos, além da arquitetura mais clean, temos um denso esvaziamento populacional pelo fato de existirem um ínfimo número de de pessoas muito ricas. Em geral, nesses níveis do topo da escala urbana e social, temos alguma corporação (ou algumas) determinando e muitas vezes delimitando o estilo de vida das camadas que estão abaixo.
Ou seja, os que menos podem, ocupam as ruas, boates, bares e vielas de uma favela qualquer; enquanto isso, os que mais podem, uns raros, observem tudo à sombra da ganância que causou a desgraça social dos que vivem bem mais abaixo. Viviam, no caso de Stray.
Tudo isso, cara leitora e caro leitor, acreditem, é pontuado aos poucos durante o jogo. Se estamos atentos aos detalhes da história através de textos que são encontrados em muros e paredes, ou ouvindo conversas dos NPCs, recebemos pequenas migalhas da história e de tudo que causou essa hecatombe social que segrega pessoas e grupos daquele distinto mundo.
Essa coisa dos textos nas paredes, para além e antes das telas, é algo muito próprio da lógica cyberpunk. Há cerca de um século, um renomado e problemático — racismo, envio de cartas aos membros da Ku Klux Kan e mais — escritor brasileiro já descrevia que as leituras do futuro seriam através de escritos em paredes.
A mesma hecatombe social que gerou favelas hiperpopulosas fez com que, no mundo de Stray, as camadas fossem três: além do nível superior e o nível inferior, há também o eixo ‘Extramuro’, a redoma de concreto e aço que separa os dois níveis dentro de si do que há extra-muro. Por sinal, no jogo, há até um Manifesto dos Extramuros. E mais não digo.
Do pouco que se sabe sobre o que originou a desgraça social que atestamos com poucos minutos in-game, sabe-se que uma bactéria contaminou a cidade por conta do excesso de lixo nos níveis superiores. A bactéria, inicialmente, foi criada para dissolver tal lixo. Com o sumiço dos humanos, a bactéria sofreu mutação e passou a devorar mais que lixo. Essas bactérias, que são chamadas Zurks, são os seres que foram originados a partir dessa mutação da bactéria.
Com isso, logo no início do jogo, o nosso protagonista, um gato sem nome, está caminhando com seus outros amigos felinos pelo Extramuro. De certa forma, o gato, muitas vezes, tende a ser um animal lúdico. Essa ludicidade existente no começo do jogo contrasta com uma atmosfera que vai, aos poucos, se distanciando disso, emulando uma outra característica dos gatos: o mistério, ou o ar misterioso (reforçando a base mitológica egípcia dos gatos).
Inicialmente, a atmosfera que nos rodeia, embora plasticamente bela, é de abandono industrial, excesso de matos, musgos, água que escorre desenfreadamente por tubulações, pavimentações falhas e cheias de buracos e rachaduras. Há um clima pós-apocalíptico que bastante lembra alguns cenários da franquia The Last of Us.
Nem é exagero, a comparação. Apesar do protagonista felino, e não humano, como em TLOU 2, estamos diante de um dos jogos mais bonitos já criados. Seus doze capítulos apresentarão uma diversidade de biomas, locais e construções que causarão surpresa em qualquer jogador que esteja menos por dentro de todo o material promocional do jogo lançado até então.
Passado o clima inicial relatado no parágrafo anterior, instantes depois, um acontecimento desfaz a party de gatos e põe o nosso herói-felino (ou um felino-herói?) em uma outra situação bastante diferente e peculiar.
A introdução, como em qualquer jogo, nos ajuda a conhecer e praticar os comandos básicos de Stray, que não é um jogo repleto de comandos e que ainda vai “eliminando” alguns. Mesmo assim, muita coisa pode ser feita a partir, justamente, dos poucos comandos que usamos: andar, correr, pular em plataformas pré-determinadas, usar as unhas em objetos e superfícies e… miar, claro.
O miado funciona como aquele tipo de sensor/radar habitual dos jogos atuais: ele indica caminhos e coisas. Só que, estranhamente, o miado do gato só tem alguma serventia no início do jogo, não se integrando melhor ao restante do game.
Visualmente estonteante, com gráficos que farão rugir as placas de vídeos, o jogo, que ainda vem com localização em português brasileiro, opta por oferecer uma tela sem nenhum tipo de hub. Com isso, não há bússola, mapa, algum objetivo listado na tela, índice de munição (até porque não há armas) ou mesmo barra de energia.
A decisão de deixar toda a tela para o desfrute, o deleite e a imersão do jogador reforça ainda mais o quão belo graficamente Stray é, não parando de surpreender em nenhum dos seus 12 capítulos. Claro, a decisão por entregar um jogo linear, curto e bastante roteirizado faz com que o fator gráfico se destaque e encante qualquer pessoa que ponha os olhos na tela durante qualquer momento do jogo.
Além do mais, por ser linear e scriptado, não há muito espaço para folgas, pois cada passo que é dado, cada pata no chão, conta significativamente para o avanço da narrativa.
Apesar do nosso protagonista não ser falante (embora ele manifeste reações através do seu miado ou olhar), ele não está só. Quando não está interagindo com algum NPC, o gato é amparado por B-12, um companheiro robótico que ajuda a traduzir as falas dos robôs encontrados pelo jogo, bem como conta certas histórias e possui algumas ações importantes para o avanço do protagonista.
Falando em robôs, além dos Zurks, eles são a única coisa que estão por toda a parte durante o jogo, já que, ao que tudo indica, os humanos morreram, aparentemente. Em determinado momento, um dos robôs fala que em breve fará 374 anos. Em outro instante, um outro androide, tranquilamente, comenta que poderá esperar mais de 700 anos até sair livre de certa prisão. Assim, não sabemos ao certo como é ou quem há no Extramuro, visto que por lá estivemos apenas por pouquíssimos minutos.
Os Zurks, as criaturas que perseguem o gato e corroem tudo que veem, sempre desafiam o jogador a agir o mais felinamente possível. É preciso correr, se esgueirar, ter pensamento ágil e reflexos de… gato. Aliás, há algo muito legal sobre os Zurks e nossos encontros com esses nêmesis: ter como eliminar os Zurks não deixa o jogo mais fácil: deixa mais assustador. O que é ótimo, pois o jogo exige mais do jogador no tempo certo, pois deu tempo suficiente para que quem joga saiba usar todos os recursos disponíveis para certos encontros.
Um detalhe interessante do jogo é sobre os poucos colecionáveis existentes. Stray não quer alongar a si mesmo forçando a coleta de colecionáveis e tornando a gameplay maçante, pois são realmente partes independentes da narrativa principal e que se ligam-se aos NPCs com algum retorno ao jogador, seja em forma de descobrimento de uma história paralela ou ainda do recebimento de um item cosmético.
Stray, que guarda algumas surpresas, não faz questão de dar muitas respostas. Talvez, se o elevado número de vendas se confirmar, em algum tempo anuncie-se uma continuação, trazendo algumas respostas que possam ter ficado pendentes neste primeiro jogo.
Ainda assim, como uma primeira empreitada, a BlueTwelve entrega uma obra enxuta, densa, com um protagonista fofo — e que se vende sozinho e sem pesados esforços de marketing — e que exige do jogador certa perspicácia, agilidade, reflexo, boa memória e que valoriza profundamente o mundo central que criou, dando espaço (mas não exigindo) para que investiguemos cada canto, quarto e pedaço do cenário. A pergunta que não quer calar: quantas vidas têm os gatos?