Passa ano e entra ano, e com a indústria de videogames cada vez maior, dezenas de jogos são lançados diariamente para inúmeras plataformas. A maioria deles, são o que chamamos de ‘Shovelware’, que em sua verdadeira acepção da palavra no mundo dos jogos, nada mais é do que um jogo que preza pela quantidade ao invés da qualidade.

Ou seja, produções que em sua grande maioria são cópias descaradas de um outro produto, ou simplesmente algo feito sem o menor esforço. Apesar dessa prática acontecer mais no mercado independente, não precisamos nos esforçar muito para encontrar exemplos de jogos assim em produções Triple A.

Não faço parte da turma que acha que não existe mais criatividade, pelo contrário, todo ano nós nos surpreendemos com algo novo. O que falta nada mais é do que a liberdade criativa. E é com a liberdade criativa que o estúdio Awaceb proporcionou uma aventura encantadora em Tchia, jogo que chega para Playstation 5 e PC em 21 de março.

Existem quase 200 países na Terra, mas muitas vezes vemos jogos acontecendo na mesma panelinha de sempre no que diz respeito aos jogos dos grandes estúdios. Com o desenvolvimento de jogos se espalhando para mais lugares ao redor do mundo, há mais oportunidades do que nunca para obter pequenas doses homeopáticas de lugares e culturas encantadoras que a maior parte do planeta sequer tem conhecimento. Tchia é um desses jogos, pois é um título focado na exploração de mundo aberto fortemente inspirado na cultura da Nova Caledônia. E mesmo que pareça um pouco magro, seu cenário e charme oceânicos compensam essa lacuna.

Um mundo encantador

É difícil falar sobre Tchia sem mencionar outros jogos e franquias enormes, então não tem como não começar comparando-o com um dos mais óbvios: The Legend of Zelda: Breath of the Wild. Como na obra-prima da Nintendo, senti uma sensação onipresente de liberdade ao jogar Tchia. Claro, o jogo ainda reúne algumas missões e objetivos, mas a verdadeira alegria veio apenas de explorar o ambiente e ver quais pontos turísticos e atividades podem existir por trás da próxima montanha. Mas onde BOTW se concentrou na química entre os poderes de seu Sheikah Slate e os vários elementos da flora, fauna e paisagem de Hyrule, Tchia se inclina para a física lúdica de seu mundo.

Assim que mergulhei minha cabeça em sua mecânica de movimento surpreendentemente profunda, o ato de explorar essas ilhas em Tchia foi incrível. Isso se deveu em grande parte ao agrupamento de mecânicas familiares de vários jogos e gêneros diferentes. A escalada baseada em resistência e o paraglider assemelha-se obviamente ao já mencionado Breath of the Wild. Isso é fortalecido quando combinado com a capacidade de se catapultar de árvores no ar.

A sua caminhada está longa? O seu destino não está muito próximo? Suba em um coqueiro, balance e se jogue para viver o seu sonho! De volta ao solo, você também tem a capacidade de realizar deslizamentos radicais em qualquer inclinação, trazendo à mente sombras do subestimado Vanquish. Mas a jogabilidade de Tchia realmente se destaca quando combinado com a principal gamificação de Tchia: seu poder de possuir objetos e criaturas em todo o mundo.

O “salto da alma” de Tchia se baseia no gênero de jogos prop hunt (esconde-esconde). Você é capaz de habitar o corpo de vários objetos e criaturas nas ilhas ensolaradas. Se eu quisesse voar alto, poderia me tornar uma gaivota. Se eu quisesse explorar os mares, poderia me tornar um golfinho. Se eu quisesse canalizar meu interior, tal qual o vencedor do Oscar `Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo`, poderia me tornar uma pedra e contemplar o significado de minha existência. Essa mecânica misturada com ilhas e culturas que jamais foi explorada por colonizadores, faz de Tchia uma das aventuras mais relaxantes e cativantes que você pode desfrutar nos videogames.

Também tracei muitos paralelos com a natureza lúdica de Super Mario Odyssey, onde encontrei alegria em cada coisa nova que poderia me tornar. Afinal, a mecânica do Cappy, de Super Mario Odyssey é brilhantemente bem integrada aqui. Também há tons de ‘The Legend of Zelda: The Wind Waker’ presentes em Tchia, e não apenas pelas vibrações frias, visuais coloridos e navegação pelas ilhas.

A qualquer momento durante minha aventura, eu poderia pegar meu ukulele e dedilhar uma série de melodias com diferentes efeitos. Alguns mudariam a hora do dia ou o clima, enquanto outros poderiam atrair animais ou até convocar frutas específicas que podem explodir obstáculos.

Apesar dos visuais caprichosos, há um espírito de rebeldia em Tchia que admiro muito. Usei frutas explosivas para destruir estátuas espalhafatosas pelas ilhas, invadi acampamentos de soldados malignos feitos de tecido e os incendiei com uma lamparina de querosene, e vasculhei cavernas seguindo as instruções de um antigo mapa do tesouro. Tchia também entrega uma excelente variedade de customização, permitindo que você personalize a aparência de seu personagem, bem como sua jangada. Embora tudo isso pareça ser puramente cosmético, fiquei impressionado com a profundidade com que pude notar em cada adereço. É como se cada peça de roupa ou acessório, contasse uma história sobre aquele povo.

O charme de uma exploração recompensadora

Tchia faz parte daquele tipo de jogo que se você contar sobre qualquer experiência, pode estragar a principal sensação que o jogo te proporciona a cada minuto, que é a de descoberta. Portanto, pretendo evitar me alongar sobre determinados rumos da história e dos lugares a serem explorados.

Ao iniciar o jogo pela primeira vez, você vai logo de cara se encantar pela protagonista que dá nome ao jogo. Ela e seu pai moram em uma pequena ilha e sobrevivem diariamente com plantação e pesca. Não é preciso de muito tempo para conseguir ser cativado pela história não só de Tchia, mas de tudo que há no entorno desse mundo que você está prestes a descobrir. Apesar de ter um tom leve, a história de Tchia é motivada pela vingança. Se bem que vingança é algo que gera ódio, e isso é algo que não consigo ver nos olhos dessa personagem. Então, por mais que inimigos tenham sequestrado o seu pai, o que move Tchia é o amor que ela tem por ele. Então a partir desse momento, você embarca na jornada cheia de descobertas.

A navegação em Tchia não é nada tradicional. Você não tem os famosos pontos de interrogação e de interesses em seu mapa. E por falar em mapa, você no máximo poderá ter uma resposta sobre “devo estar em algum lugar próximo a isso”. Portanto, é notório que Tchia foi concebido para ser aproveitado com o mínimo de informação explícita possível para o jogador. E isso é o que faz a descoberta dele ser tão gratificante. Não necessariamente você terá sensações de descobertas sobre o que tem naquela montanha ali que eu posso escalar ou me tornar um pássaro para voar e chegar mais rápido.

Você irá ser recompensado pelo que você tentou fazer, mas muito mais que isso, as chances de Tchia encontrar algo que pode mudar a concepção dela de mundo é também gigantesca. A evolução e progressão que você tem no jogo caminha de mãos dadas com a forma que Tchia vai amadurecendo. E claro, você amadurece junto.

A partir do momento em que você termina o prólogo do jogo, Tchia está pronta para que você use ela para explorar o jogo da forma que você quiser. Sem marcadores de missão ou palavras na sua tela tentando puxá-lo em uma direção específica, você confia no que vê ou no que parece interessante para traçar seu curso. O resultado é substancialmente mais satisfatório e faz com que até a menor descoberta pareça gratificante. A certa altura, fiquei distraído provavelmente pela décima vez na minha missão de coletar algumas pérolas que me pediram.

Da última vez, fiquei curioso para ver o que aconteceria se eu jogasse uma lanterna no rio (ela continuou brilhando e brilhando debaixo d’água – eu me peguei perguntando se vale a pena passar alguns minutos apreciando aquilo). Desta vez, vi uma fogueira à distância e involuntariamente entrei no meio de um grupo de soldados que tem uma vestimenta estranha e dançavam animados devido um poder nefasto. É o tipo de encontro padrão que você pode esperar em qualquer jogo. Mas eu encontrei sozinho e puramente por curiosidade, então sempre é algo especial e pessoal.

Normalmente, eu questionaria o quão sustentável é a minha admiração por esse sentimento de descoberta. Encontrar uma fruta que melhore a resistência ou tropeçar durante uma corrida que Tchia pode fazer ao longo das inúmeras atividades que você pode gastar horas no jogo, poderia até perder o brilho depois de horas escalando montanhas na ilha, mas, ao contrário de outros jogos, parece que Tchia está interessada em dar a você uma recompensa diferente da maioria deles.

A visão de Tchia sobre a Nova Caledônia é lindamente renderizada e animada a ponto de apenas caminhar, observar o vento agitar suavemente a grama e ouvir os grilos ganharem vida enquanto o sol se põe é sua própria recompensa. Raramente os jogos capturam aquela sensação de calma e sem a pressa que você deveria obter de uma boa caminhada pela natureza e, ao contrário de um passeio no mundo real, você não será interrompido por uma mensagem de texto ou um esquilo zangado ou as dezenas de outros incômodos que você pode encontrar no deserto real.

Mesmo outros jogos “aconchegantes” têm objetivos ou coisas que você realmente deveria fazer. Tchia fica feliz em deixar você olhar o brilho suave do sol na água o tempo que quiser. É um mundo de fantasia idealizado do melhor tipo concebido por uma alegria apenas de existir. Essa sensação de fantasia aparece até no mundo aberto e nos elementos de plataforma. No lugar de uma barra de saúde, Tchia tem um medidor de resistência que se esgota quando você cai de lugares altos ou se machuca, e se reabastece rapidamente. Saltar de um penhasco alto ou cair em algumas rochas? Não há problema – apenas limpe-se e continue. Não há motivo para ser punido em um jogo tão amável.

Em um momento que voltava de uma longa jornada procurando um determinado item, optei por não voltar pelo caminho que eu havia trilhado. Fiz outra rota e descobri uma vila cheia de crianças que criavam suas próprias histórias. Histórias essas que não foram inspiradas em contos que conhecemos. Afinal, aquele é um povo que talvez sequer tenha tido contato com o mundo em que vivemos. Passei pouco tempo conversando com as pessoas que via nas estradas da ilha ou pescando no rio, mas as conversas que tive, incluindo um breve boato sobre rixas entre famílias, me deixam ansioso para saber mais sobre as pessoas que vivem na ilha e como a própria Tchia se encaixa nisso tudo.

Para esquentar o seu coração

Eu sei que no final de uma análise sobre um jogo, normalmente é esperado que eu tenha que dizer se vale ou não a pena jogar. Mas com Tchia é diferente. Em Tchia meu coração ficou quentinho, minha boca ficou com um sorriso o tempo todo em que estive com o jogo aberto em meu computador. Se o ser humano precisa de drogas para se entorpecer e esquecer dos problemas que tem em sua volta, Tchia em doses homeopáticas, quando você estiver se sentindo pra baixo, pode ser a válvula de escape para uma realidade que você adoraria vivenciar, nem que seja por um minuto.

O simples fato de você pegar o seu ukulele e sentar diante de uma montanha gigantesca para observar o pôr do sol nas águas azuis de Nova Caledônia enquanto toca algumas notas da sua canção preferida, já pode ser tudo o que uma mente poluída pelos problemas que uma cidade grande pode gerar depois de um dia ruim.

Dito isto, acho que fica claro o quanto eu posso recomendar Tchia para qualquer um que precise de um momento de paz. Talvez de fato ele seja feito para isso. Não sei se os desenvolvedores, que diga-se passagem, fizeram um trabalho esplendoroso sobre sua própria cultura, tinham em mente que estavam concebendo algo que poderia fazer o coração de alguém se alegrar de forma tão automática como o jogo que eles produziram. Mas se foi isso, acertou em cheio. Se não foi, acertou também, pois Tchia ainda assim é um jogo para você gastar dezenas de horas explorando as suas ilhas e seus recifes.

Nota
Geral
9.0
tchiaTchia entrega uma aventura contagiante, recheada de mistérios e um carisma gigantesco de um povo que tem muita história para contar. Explorar esse mundo com a liberdade de uma garotinha à procura do seu pai é uma experiência para deixar qualquer pessoa com um sorriso no rosto.