Da melhor forma possível, The Knight Witch é um amontoado de ótimas coisas de grandes jogos. O jogo, mesmo que não tenha buscado reinventar a roda da oitava arte, com bastante dignidade e apreço por todas as obras que lhe influenciaram, entrega algo eficaz, sólido, divertido ou duro quando precisa ser, demasiadamente desafiador e que possui uma paixão visível por seus personagens e pela densa história que quer contar (e conta muito bem).
Em um jogo que merecia muito mais reconhecimento da indústria, The Knight Witch é plural e consegue abordar assuntos delicados e que vão ao encontro de muitos temas vigentes da sociedade atual.
Nas palavras da sua própria desenvolvedora, a Super Awesome Hyper Dimensional Mega Team, que foi responsável por apenas outros três jogos antes (Supermagical, Rise & Shine e Pro Zombie Soccer), The Knight Witch é um ‘narrative-driven deck-bulding twin-stick shoot’em up flying metroidvania game’.
E com leves toques de souslike, acrescento eu. Abrasileirando os dizeres da Super Awesome, o que temos é um jogo guiado pela sua própria narrativa, associado com o colecionar, a organização e o uso de cartas mágicas a partir de um jogo de tiro de “nave” frenético e que também é um metroidvania.
Contudo, The Knight Witch não é apenas mais um metroidvania a ser lançado no mercado – e com localização em português brasileiro, inclusive. Sendo um, sabemos o que em parte nos espera: desde uma sucessiva conexão das suas mecânicas como também uma incorporação mais dinâmica e linkada parte por parte da geografia dos seus cenários.
Porém, para reforçar ainda mais o talento da sua própria equipe, não é apenas isso o que acontece. Jogos que podem ser encapsulados na formatação de um metroidvania, em muitos casos, no que eles esconderiam de armas, armaduras e demais itens pelo cenário, KW vai além e nos presenteia com outros pedaços de histórias paralelas que ocorrem enquanto descobrimos mais sobre personagens que não nos revelam tudo e que não damos conta por causa da magnitude daquele mundo e do passado histórico do ambiente do jogo, permitindo com que o cenário seja um “personagem” a mais, vivo e pulsante. Em Knight Witch, não é apenas como se as paredes tivessem ouvidos. As paredes sussurram.
Às descrições da desenvolvedora, acrescento ainda que The Knight Witch também emula pitadas de jogos soulslike, subgênero que se tornou gênero devido ao enorme sucesso e replicações recorrentes das mecânicas dos jogos da developer From Software (série Dark Souls, Bloodborne, Sekiro, Elden Ring).
Ao se portar como um soulslike, a impressão que fica é que isso foi feito em uma via de mão tripla: tanto serve para o básico da mecânica de descanso/save e respawn dos inimigos, como para apresentar vastos desafios a cada chefe, como serve para angariar a experiência para a personagem principal. Que aqui, felizmente, não se perde quando do game over.
Com The Knight Witch, a SAHDMT entrega uma das maiores e mais gratas surpresas do ano. É uma pena, portanto, que seu lançamento tenha ocorrido após a submissão dos jogos elegíveis para o Game of The Year (GOTY), já que haveria aí, sem dúvidas ou ressalvas, um interessante candidato aos prêmios de melhor trilha-sonora, direção de arte, melhor jogo de ação, melhor jogo independente e, de repente, poderia haver uma brecha ao menos para ser indicado ao prêmio máximo.
Afinal, do que se trata The Knight Witch? E quem são as Bruxas Cavaleiras?
A cidade subterrânea de Dungeonidas é uma cidade que não deveria ser. Catorze anos antes dela ser o espaço de vivência de toda uma comunidade, na superfície, um conflito originou uma guerra e, a partir dos tempestuosos resultados da guerra em questão, foi preciso se sair do plano superior e passar a se viver no subsolo, reconstruindo e reorganizando a vida em sociedade.
O conflito que empurrou todo mundo para baixo se deu por divergências políticas sobre o futuro daquele mundo e que colocaram, em lados opostos, o Imperador Erebus e sua máquina de guerra e casulo, e as Knight Witches lideradas por Robyn, o Anjo da Destruição. Após uma custosa e sangrenta batalha, a derrocada de Erebus aconteceu, mas não sem antes forçar a homérica mudança habitacional da população da superfície para Dungeonidas, onde o jogo se passará após a breve introdução.
Durante catorze anos, a paz voltou a habitar o coração e os lares de Dungeonidas até que uma nova força passasse a rondar por lá. O novo mundo passou a ser ameaçado por Kalypso, filho de Erebus, e o ser da raça infernal chamado Graff, um general caçador de bruxas.
Com o perigo à espreita novamente, Rayne, uma quase Bruxa Cavaleira, e que tranquilamente vivia com Akai – seu marido e também um infernal com ligações passadas com o império –, se vê na necessidade de ter que tomar algumas pequenas decisões para ajudar o seu povo e vilarejo. E como em toda boa história da jornada do herói/heroína (expressão e linha de teorização do escritor Joseph Campbell), em algum momento haverá a relutância para se assumir a missão diante de tantos perigos e das incertezas do sucesso.
A relutância de Rayne, contudo, é menos física e da ordem das forças e, de certa forma, é mais moral e psicológica. Rayne nunca chegou a ser uma Bruxa Cavaleira, afastando-se do treinamento e das outrora companheiras Knight Witches. Com isso, sua aventura começa em um misto de curiosidade pelo que há de vir, responsabilidade para não desonrar o legado das outras bruxas e coragem para enfrentar tudo que poderá ocorrer sem as forças e habilidades que ela nunca teve.
A Super Awesome, assim como Rayne, também defende legados
Em um oceano repleto de outros metrodvanias e soulslikes, como seria possível não necessariamente inovar, mas, fugir do lugar comum e entregar uma obra com certo carisma, que se destacasse e tivesse o seu próprio pedigree? A Super Awesome Hyper Dimensional Mega Team (SAHDMT), no entanto, utilizou algo muito próprio dos seus outros jogos, que eram shooters com o apoio dos dois sticks e, ao redor dessa mecânica, como um bom blockbuster cinematográfico que pensa o roteiro ao redor das suas set pieces, deu vida ao universo das bruxas cavaleiras ao redor de uma simples e “arcaica” mecânica.
O que quero dizer com isso é que muito antes de se utilizar de mecânicas e outros aspectos de gameplay de franquias e jogos de renome, a SAHDMT estava girando em torno do próprio eixo. Com isso, a desenvolvedora mostra veneração e respeito diante do legado interno de anos de desenvolvimento de outros jogos da própria Super Awesome e aproveita-se também do know-how adquirido pelos seus devs, que chegaram a trabalhar em outros jogos bem mais conhecidos que todos os games até então lançados pela SAHDMT. A saber: Plants VS Zombies, RiME e Moonlighter.
O esmero com a obra final salta aos olhos e ecoa nos ouvidos. Desenhado à mão e com uma orquestração que contribui constantemente para a imersão do jogador desde o menu principal, The Knight Witch nos faz lembrar de outros jogos clássicos por conta de diversos aspectos: de Hollow Knight, temos a aura como um todo, com The Knight Witch sendo uma espécie de sucessor espiritual (e mais colorido) de HK; de Ori and the Blind Forest e sua continuação, há todo o respeito à organicidade inigualável de um metroidvania caprichado em cada bioma, tela e interconexão de suas salas, antessalas, pequenos mundos e grandes paisagens; de Celeste, bem mais recente.
The Knight Witch herda a maneira singela acerca de como é possível se contar uma história psicologicamente profunda através de diálogos que fogem do caráter expositivo, felizmente. Sobrou até mesmo para Desencanto, a série da Netflix dos criadores de Os Simpsons – atentem-se para uma personagem chamada Lalashi e vejam como ela parece ter saído diretamente de Desencanto.
The Knight Witch é a magnum opus da Super Awesome Mega Team
A maneira profunda como KW discute determinadas temáticas poderá surpreender as (os) jogadoras (es) que estiverem esperando qualquer jogo mais do mesmo. O game conversa diretamente com a sociedade atual e traça diversos paralelos com a cibercultura acelerada do século 21 e a maneira como se persegue uma cultura de likes, seguidores, compartilhamentos, sucesso e a capacidade de influenciar legiões.
No desenrolar da narrativa, aos poucos ficamos sabendo que nem tudo é o que parece e várias pequenas pistas narrativas podem ser organicamente descobertas a partir do progresso no game ou encontradas pelos cenários.
Dessa forma, remando e rumando para longe do lugar comum de tantos jogos, KW nos apresenta uma história madura e que fala sobre a maneira como nos conectamos com outras pessoas através de links, as perdas destas mesmas conexões/links, os processos de obtenção da confiança ou o aprofundamento da desconfiança e, acima de muita coisa, KW discute sobre o imenso fardo de se carregar, com responsabilidade, a vida e o futuro das comunidades através da forma como contamos a verdade mais dolorida ou simplesmente mentimos para aliviar algumas vindouras dores.
Não será raro que o jogo teste o altruísmo do jogador, sendo indigno com quem joga para saber se quem controla também se dispõe ao sacrifício para tentar manter ou fazer perdurar ao máximo a essência de uma “simples” figura digital.
The Knight Witch é uma obra que desafia e questiona o jogador de tempos em tempos. Entre os dilemas morais que o jogo nos apresenta, comumente iremos nos questionar se é melhor promover o bem coletivo através de uma mentira individual (atentem para as interessantes discussões sobre marketing e mídia social feitas pelo jogo) ou se é melhor contar a verdade e ferir uma legião de pessoas.
Amigas e amigos, creiam-me: em muitos momentos, o jogo oporá você, jogador, e Rayne, a protagonista. Sem entrar no terreno dos spoilers, digamos apenas que mentir traz uma vantagem direta para você, jogador, enquanto que falar a verdade mantém a essência de Rayne, a carismática e pura protagonista. Sendo assim, ao forçar a quebra dessa quarta parede, antes como narrativa e então como mecânica, Knight Witch brilha como raros jogos conseguem fazer.
Para além destes temas, KW discute ainda como o ódio pode cegar e descerebrar os indivíduos acometido por ele. E como, por exemplo, o sacrifício pode representar uma porta de salvação ou redenção de um coração tão descaminhado.
Como se não bastasse tudo que aborda e acima já foi falado, a obra ainda consegue tocar em um ponto nevrálgico da nossa sociedade: a questão ambiental e a falta de cuidados que temos com o nosso planeta. E essa questão, por si só, dentro do jogo, consegue se auto esticar mais um pouco e ainda fazer um paralelo mitológico com a proteção ambiental através de uma figura emblemática.
Dessa forma, o jogo une o futuro tecnológico de uma sociedade com o passado mitológico para abordar a questão ambiental no presente da narrativa do game e singelamente tecer analogias externas à obra.
Em The Knight Witch, seus aspectos técnicos e de gameplay são louváveis
A maneira como o controle de Rayne é fluido, mesmo em um jogo que muitas vezes beira o frenesi visual, impressiona. Justamente por cadenciar sua evolução de gunplay, The Knight Witch consegue sempre promover a chegada de novos desafios junto da aquisição de novas habilidades.
Com isso, por mais difícil que certos inimigos e chefes possam ser, o jogo apenas requer calma para uma melhor formatação das próprias habilidades, visto que toda a questão da deck-building premiará quem souber melhor entender quais as cartas mágicas que melhor se adaptarão às necessidades impostas por cada desafio enfrentado ou bioma em que se está.
É um jogo que premia quem explora e bonifica quanto mais se joga. A tentativa e erro, no caso de KW, é essencial para que haja o progresso no jogo. Não que isso não seja um aspecto comum ao rol de jogos já lançados em toda a história. O ponto central é que KW oferece muito mais caminhos e pequenas facilidades quando exploramos e jogamos mais, nos fazendo entender que nossa dificuldade em atravessar certos chefes se dá muito mais por impaciência do que, muitas vezes, pela falta de talento com um estilo de jogo que já jogamos tanto ao longo da história dos videogames como um shoot ’em up, afinal.
No mais, conhecer bem os NPCs e suas funções pode tornar a sua vida no game bem mais fácil. Ou menos difícil, já que é um jogo que prima e preza por desafios de alta complexidade.
Há tanta integração e conexão entre os vários aspectos de KW que até mesmo seus tutoriais conseguem unir a história e o gunplay para tornar-se um mero tutorial em mais que algo solto na introdução de um jogo, e sim em algo inerente ao próprio desenrolar narrativo da obra, mostrando o porquê de The Knight Witch ser um dos jogos mais cativantes lançados em 2022.