Jafar Panahi segue mostrando porque é um dos cineastas mais importantes e necessários do nosso tempo. A coragem com a qual ele desafia o sistema islâmico para roteirizar, produzir, dirigir e muitas vezes atuar em seus filmes, só é equiparada com o brilhantismo de suas histórias, que ousam criticar o regime de dentro, mesmo em meio às penas e acusações que pesam contra Panahi.
Em Sem Ursos, seu mais novo longa-metragem, Panahi utiliza-se da metaficção e do falso documentário para apresentar uma história aparentemente simples, mas que vai, minuto após minuto, se construindo como um Frankenstein de desgraças em um país ornamentado por uma cultura que Panahi, ao longo de sua vida fora e dentro das telas, questionou.
No longa, Panahi, de um vilarejo, instrui sua equipe de filmagem durante a produção de um novo filme. Da localidade, ele tenta apaziguar os ânimos de sua produção que é filmada bastante distante dele, além de eventuais aspectos técnicos que estão fora de ordem, enquanto também se envolve em intrigas civis com a população da localidade em que reside.
Ao supostamente tirar uma simples foto, Panahi não fazia ideia do quão problemática esta simples captura de imagem poderia ser, já que ela pôs à mesa a honra de um homem e a segurança de um casal enamorado. Além disso, a simples presença de um diretor de cinema com algumas posses, pode gerar estranheza da população local ao se ver pelas lentes da câmera fotográfica do diretor. Por ser inquilino de um simpático casal, o diretor acaba recebendo instruções quase que diárias sobre como proceder naqueles espaços.
Por tais aspectos, pode parecer que estamos diante de um documentário, o que não é o caso, mesmo se tratando de situações cotidianas daquela cultura e país. O longa consegue, com bastante engenhosidade, costurar duas histórias que, mesmo se passando em locais distintos, estão unidas pela presença física ou virtual de Panahi, além do próprio cinema, dando um ar metalinguístico à obra que, justamente por avizinhar-se ficcionalmente de um documentário, acaba ganhando ainda mais força nos momentos em que nos deparamos com acontecimentos violentamente reais vivenciados pelos personagens das duas histórias.
Vivendo sob um regime de exceções, as ações e desejos individuais, por mais simplórios que sejam, estão condenados à vigilância de uma repressão histórico-cultural que não titubeou em delimitar direitos, efetuar prisões ou permitir o surgimento de corpos mortos nos primeiros sinais de crítica ao sistema quase feudal em que vive o Irã.
Com suas histórias e personagens, e mais ainda com a sua coragem, Panahi tem mostrado que o cinema é uma arte documental que pode pintar, a partir dos melhores pincéis e tintas, as mais frias, feias e tenebrosas imagens da vida como ela é.
Mesmo através da ficção, seus filmes denunciam os horrores instalados em uma sociedade que cerceia direitos, liberdades, a expressão e as vidas de muitas e muitos que tiveram a coragem de apontar o dedo contra a opressão deste sistema.
Para se ter uma mínima ideia das dificuldades da carreira do diretor, enquanto Sem Ursos ganhava o Prêmio Especial do Júri no Festival de Veneza de 2022, Panahi encontrava-se preso. A acusação contra ele era a de que o cineasta fazia propaganda contra o sistema.