Quando analisamos as guerras mundiais percebemos que o cinema e a indústria dos games valorizam muito mais a segunda do que a primeira. Provavelmente isto ocorra devido à sua maior dimensão, personalidades e fatos marcantes.
A Ubisoft, sabiamente, foi contra esta tendência e nos trouxe um game digno de ser chamado de obra de arte, ensinando história de forma divertida através de gráficos cartunescos e personagens carismáticos capazes de nos deixar emotivos com seus conflitos.
Valiant Hearts: The Great War é um jogo 2D do gênero puzzle/adventure, desenvolvido pelo estúdio Ubisoft Montpellier e publicado pela Ubisoft. Lançado inicialmente para Windows, PlayStation 3, PlayStation 4, Xbox 360 e Xbox One em junho de 2014, sendo portado no mesmo ano para Android e iOS.
Por fim, posteriormente, recebeu uma versão para Nintendo Switch. Abaixo segue trailer de Valiant Hearts.
Curiosidade 1: Valiant Hearts recebeu alguns prêmios que demonstraram o reconhecimento da qualidade do título. Como melhor jogo no Annie Awards; assim como de título histórico e original pelo British Academy Game Awards.
Na mais popular das premiações, The Game Awards, recebeu estatuetas nas duas categorias em que concorreu, Melhor Narrativa e Games for Change (para jogos que buscam transmitir mensagens positivas e de mudança social).
Bastidores
O diretor de Valiant Hearts, Yoan Fanise, tinha acabado de terminar seus trabalhos em Assassin’s Creed III quando começou um projeto bastante pessoal que tinha interesse em fazer havia um bom tempo. Desta vez seu jogo seria um título de menores proporções, realizado por uma equipe pequena e que ele tivesse acesso durante todo seu desenvolvimento. Fora isto, já informava que o game teria fundo histórico e seria baseado em fatos reais.
Assim o tema escolhido foi a Primeira Guerra Mundial. A razão desta escolha se deu, principalmente, devido ao fato de vários membros do time de desenvolvimento possuírem histórias familiares ligadas ao conflito e que acreditavam que iria cair bem com o estilo de projeto que tinham em seus planos, que seriam histórias verídicas, emotivas e que envolviam temas como família, amor e amizade.
No decorrer da campanha vamos tendo acesso às cartas de diversos soldados que as enviavam para os seus familiares com o objetivo de informar suas condições de saúde e o clima de batalha. O interessante é que entre elas estão cartas de familiares do time de produção, como de Feliz Chazal, avô de Yoan Fanise, que perdeu suas duas pernas durante o grande conflito.
Alguns dos destaques que merecem ser citados são os objetos que encontramos do período, como as cartas e as chamadas “artes da trincheira”, que eram artesanatos produzidos pelos soldados em seus momentos livres. Por incrível que pareça, parte da crítica não gostou destes pontos, os considerando exageradamente intrusivos.
Por outro lado, a equipe de produção considera estes um dos principais destaques positivos da obra, principalmente pelo fato de conseguirem ensinar história para as pessoas de forma divertida.
Yoan Fanise citou em uma entrevista o retorno favorável a respeito deste tema, vindo de um dos jogadores de Valiant Hearts: “As pessoas entenderam que isto enriqueceu muito o jogo. Muita gente, inclusive, disse que aprendeu mais sobre a Primeira Guerra em nosso jogo do que em suas escolas”.
Curiosidade 2: Valiant Hearts teve um bom reconhecimento por parta da crítica quando chegou ao mercado. Segundo as notas do site Metacritic (que faz a média de diversas avaliações) o game ficou entre 77/100 e 87/100, dependendo da plataforma avaliada.
Antecedentes Históricos e a Primeira Guerra Mundial (1914-1918)
Em certos momentos é um tanto difícil explicar por que gostamos de um jogo: sendo mais fácil sentir do que descrever. No caso de Valiant Hearts acredito que o fato de admirar História seja uma das razões que gerou fascínio por este título.
Por este motivo resolvi fazer uma breve introdução para que, aqueles que ainda não jogaram o título, poderem aproveitar melhor a experiência, já que se trata da ambientação em que a campanha ocorre.
A humanidade teve o privilégio de presenciar um dos maiores saltos evolutivos em nossa sociedade entre os anos de 1817 e 1914, tanto na tecnologia como de forma cultural. Exemplos como o avião, automóvel, lâmpada incandescente comercializável e até o mesmo o Titanic foram destaques desta época chamada de “Belle Époque”.
Este avanço acelerado gerou incertezas quanto ao futuro, já que além de haver uma péssima distribuição destas riquezas, assim como conflitos entre países que não participavam de grandes decisões, deixavam um clima de tensão constante.
Neste ambiente pessoas já imaginavam como viria a ser a próxima guerra, já que se todos estes avanços estavam disponíveis aos olhos dos civis, todos imaginavam o que os militares das grandes nações estavam produzindo para destruir.
A consequência disto foi, assim como pessoas costumam fazer amizades quando se sentem ameaçadas socialmente, os países começar a fazer suas alianças.
No ano de 1882 a Tríplice Aliança foi composta pelos países: Alemanha, Império Austro-Húngaro e Itália, sendo estes todos contrários às formas de expansões econômicas e coloniais dos membros da aliança adversária.
No lado oposto estavam Rússia, Reino Unido e França, que no ano de 1907 formaram a Tríplice Entente, sendo estas nações que queriam manter seu domínio global e que possuíam rixas recentes com os membros da aliança contrária.
Tudo estava pronto para se dar o início da Guerra, necessitando apenas uma simples fagulha para explodir o barril de pólvora em que o continente europeu havia se formado. E assim tudo começou quando no dia 28 de junho de 1914 um estudante sérvio matou com tiros o herdeiro do trono Austro-Húngaro, o arquiduque Francisco Ferdinando.
Após este evento a Áustria responsabilizou a Sérvia, que tinha o apoio da Rússia. Devido a aliança com a Áustria, a Alemanha declarou guerra contra a Rússia. Logo após a Alemanha declara guerra contra a França e invade o território belga.
Violar a neutralidade do povo belga foi o motivo que levou a Inglaterra a entrar no conflito que, posteriormente, teve dimensões globais, devido a presença de países, como Brasil, Estados Unidos e Japão.
A meta do governo alemão era a de conquistar a França rapidamente, para, desta forma, se concentrar na frente oriental. Porém, o avanço alemão no território francês foi barrado na famosa Batalha do Rio Marne, ainda no ano de 1914, devido à grande formação de trincheiras francesas.
Esta forma de defesa, que passou a ser o maior símbolo da Primeira Guerra Mundial, tratava-se de abrigos cavados na terra e cercado por arames farpados, dificilmente transponíveis por infantarias simples.
Este formato de guerra com tropas fixas se deu até 1916, momento em que aviões e tanques passaram a ser usados em larga escala nos campos de batalha e as trincheiras puderam ser sobrepujadas sem maiores dificuldades, permitindo, assim, a passagem das infantarias. Abaixo seguem imagens das trincheiras, símbolos da Primeira Guerra Mundial.
O ano de 1917 foi decisivo para grandes mudanças no conflito, principalmente devido a saída da Rússia, por motivos de conflitos internos, e, principalmente, pela entrada dos Estados Unidos.
Neste cenário, a situação da Alemanha estava delicada, já que, além do fato de muitas das suas campanhas terem sido mal sucedidas, sua população estava passando por uma fase de miséria degradante, o que fez com que o país pedisse sua rendição no ano de 1918 e, assim, ocasionando o fim da guerra. Vale dizer que estes últimos eventos não são retratados em Valiant Hearts.
Durante seu período de ocorrência a Grande Guerra (como era chamada até aquele momento e por isto o subtítulo do jogo) era de tamanhas proporções que a população costumava dizer que seria “a guerra que iria acabar com todas as guerras”.
Conforme sabemos, não foi assim que se sucedeu a história e 25 anos depois teve início um conflito ainda maior, mas isto é assunto para ser abordado em outro jogo e em uma outra análise.
Curiosidade 3: Ao escrever esta introdução histórica acreditei que seria importante para o leitor ter consciência que como era o dia-a-dia em uma trincheira. Assim fui atrás deste relato escrito por um veterano da Primeira Grande Guerra. Espero que apreciem: “O campo de batalha é terrível. Há um cheiro de azedo, pesado e penetrante de cadáveres.
Homens que foram mortos no último outubro estão meio afundados no pântano e nos campos de nabos em crescimento. As pernas de um soldado inglês, ainda envolta em polainas, irrompem de uma trincheira, o corpo está empilhado com outros; um soldado apoia um rifle sobre eles. Um pequeno veio de água corre através da trincheira, e todo mundo usa esta água para beber e se lavar; é a única água disponível.
No cemitério de Langermark os restos de uma matança foram empilhados e os mortos ficaram acima do nível do chão. As bombas alemãs, caindo sobre o cemitério, provocaram uma horrível ressureição. Num determinado momento, eu vi 22 cavalos mortos, ainda com os arreios. Gado e porcos jaziam em cima, meio apodrecidos”. (Fonte: Rudolf Binding, um fatalista na guerra, ed. São Paulo, 1994, p. 119).
Enredo e Narrativa
Na campanha de Valiant Hearts controlamos quatro personagens durante a aventura. Suas posições e objetivos são bastante diferentes e todos merecem seu devido destaque.
Freddie é um americano voluntário junto ao exército francês que, na guerra, vê as chances de resolver problemas de seu passado; Anna, uma enfermeira voluntária de nacionalidade belga que, entre outros motivos, busca salvar vidas, independente da nacionalidade do paciente; Karl, trata-se de um imigrante alemão que vive na França junto de sua nova família (esposa e um filho recém-nascido) que, infelizmente, é convocado para lutar contra o país das pessoas que tanto ama; por fim temos Emile, o sogro de Karl, que luta ao lado dos franceses.
A forma de narrativa utilizada em Valiant Hearts foi bastante original, sendo “balõezinhos” típicos dos quadrinhos, que demonstravam a vontade e as ordens dadas pelos personagens. Isto, somado com as palavras do narrador, ajudam a formar a atmosfera simples e impessoal que a guerra possui.
Durante a aventura temos acesso a fatos que vão além do enredo dos quatro protagonistas. Isto se dá principalmente aos mais de cem itens colecionáveis encontrados pelos cenários que, assim como as cartas, estes objetos também são reais e, para muitos, hoje são consideradas verdadeiras artes das trincheiras.
Estes produtos tinhas sua criação até mesmo incentivada pelas tropas, já que além de ajudarem os soldados psicologicamente, também podiam ser vendidos em cidades.
Um destaque que dou ao jogo quanto ao ponto narrativa estão nas páginas do diário apresentadas e de um resumo dos fatos históricos que estaríamos vivenciando naquele momento. Vale dizer que sua leitura não é obrigatória, mas altamente recomendada, já que, além de acrescentar detalhes para o enredo, também nos ajudam a imergir em seu gameplay.
Por exemplo, se no início de um episódio “estudarmos” que a Alemanha, naquelas batalhas, tinha usado gás ou o lança-chamas pela primeira vez, já sabemos antecipadamente o que esperar na fase a seguir.
Algo interessante é que, apesar de estarmos em jogo da Primeira Guerra, em nenhum momento matamos inimigos. Apesar disto, temos contato constante com cadáveres e feridos.
Esta condição ajuda a fazer o jogador acreditar que não há lados corretos e errados em um campo de batalha, apenas pessoas que têm seus motivos para estarem e ansiosas para poder voltar para as suas casas.
Curiosidades 4: Um detalhe que poucos sabem é que, originalmente, Valiant Hearts teria cinco protagonistas e não quatro. Este quinto elemento seria um aviador inglês chamado George e, aparentemente, ele iria trazer um tom mais bem humorado para a ambientação da aventura. Por alguma razão ele acabou removido de seu protagonismo, aparecendo apenas como um personagem secundário em dado momento.
Análise Técnica
As formas de jogo existentes em Valiant Hearts são simples e de fácil acesso para todos jogadores. Entre eles devemos destacar momentos de plataforma, adventure, “puzzle” e um pouco de furtividade. Os quebra-cabeças são bastante simples, ainda assim, caso venhamos a ter maiores dificuldades para concluí-los, avisos de dicas aparecem na tela para que a aventura continue seu ritmo sem maiores interrupções.
Há quatro capítulos durante a campanha e nelas temos variadas formas de gameplay, incluindo uso de veículos, como tanques e táxi (destaque para este último em que devemos desviar de obstáculo que surgem no ritmo das músicas clássicas, o resultado ficou incrível).
Há alguns chefes durante a campanha, mas na prática acabam sendo “puzzles” disfarçados que devem ser solucionados antes que nosso protagonista fracasse, exigindo um mínimo de habilidade do jogador e apenas um pouco de atenção. Os checkpoints são frequentes, o que também torna a aventura nada frustrante.
Descrevendo as formas de gameplays exclusivas dos personagens temos: Com a enfermeira Anna o clássico “quick time events” nos quais devemos apertar os comandos no momento correto para curar os pacientes, resultando em uma espécie de “Guitar Hero de medicina”.
Esta forma de jogo, apesar de um tanto desgastada, caiu bem na aventura, ajudando na sua ambientação. Jogando com Emile temos com destaque sua pá, com ela cavamos trechos dos cenários. Com Freedie temos um alicate que corta arames farpados, típicos de trincheiras, e quanto a Karl, sua essência está na furtividade.
Outro personagem que merece um destaque é o cachorro Walt que, além de colaborar na resolução de quebra-cabeças, ajuda a todos, sem ter preconceitos com os uniformes dos soldados.
O tempo de campanha é curto, sendo em torno de seis horas de duração quando jogado pela primeira vez, de forma que este tempo é dividido em quatro capítulos que podem demorar mais, caso o jogador busque pelos diversos colecionáveis presentes nos cenários.
A dificuldade, como de costume em jogos atuais, é bastante fácil. Tudo na campanha é intuitivo e sem necessidade de maiores habilidades, inclusive com dicas dadas pelo próprio game caso tenhamos algum problema na continuidade da aventura.
Um quesito que merece atenção são as características gráficas do jogo. Já que, mesmo sendo um game da gigante Ubisoft, a mesma optou por um estilo cartunesco que, apesar de não atingir um potencial digno da oitava geração dos consoles, conseguiu transmitir uma ambientação perfeita e, até mesmo, mais didática.
Como exemplo me refiro a um momento da campanha em que a enfermeira Anna realiza uma amputação em um ferido. Todos sabemos o quanto algo assim é “pesado” e traumatizante para aquele que assiste tal cena, ainda assim aqui vemos de modo que os mais jovens apenas percebem que o ferido está sendo curado, enquanto os adultos entendem o que realmente há por trás.
Caso viéssemos a numerar os maiores destaques de Valiant Hearts, provavelmente, depois da narrativa, teríamos sua trilha sonora. Sendo composta, ou adaptada, por Ian Livingtone e Peter McConnell, corresponde a uma mistura de músicas clássicas, Jazz e ‘Chanson Française instrumental’. Tudo se dá de uma forma que todas faixas encaixam perfeitamente bem com a situação em que estamos passando e com seus respectivos personagens.
Atenção para o momento da fuga de táxi ao som da famosa Cancã, inesquecível. Os efeitos sonoros, igualmente, merecem elogios. Abaixo segue sua trilha completa.
Curiosidade 5: A Ubisoft Brasil merece um parabéns especial pela localização de Valiant Hearts em nosso território nacional. Digo isto pois, o título, não somente recebeu tradução para o Português Brasileiro como também acrescentou fatos históricos de nosso país ao jogo. Por exemplo: informando impactos econômicos e sociais gerados aqui pelo conflito. Fica aqui registrado nosso agradecimento.
Conclusão
A softwarehouse Ubisoft, conhecida entre os Gamers, principalmente, por suas franquias de altos gastos de produção, tais como Assassin’s Creed, Far Cry e Watch Dogs, desta vez ousou de forma diferenciada, focando mais na narrativa original do que nas enormes campanhas e gráficos incríveis.
Aqui, este estúdio querido por tantos jogadores conseguiu demostrar haver a possibilidade de produzir algo de grande qualidade sem a necessidade de grandes custos, acessível a todos os públicos e, ainda assim, capaz de educar os jogadores.
Realmente, nós da Gamer Point, esperamos que a Ubisoft valorize este seu passado recente e que no futuro próximo nos traga mais títulos de tamanha qualidade como este que tivemos o prazer de escrever para vocês.