Bem sucedido em praticamente tudo que faz, o ano de 2022 para o cineasta mexicano Guillermo del Toro foi bastante movimentado. Só no segundo semestre, mais especificamente nos últimos dois meses, duas grandes obras produzidas ou dirigidas por del Toro foram lançadas. Em outubro, com produção do cineasta, tivemos a estreia de ‘O Gabinete de Curiosidades de Guillermo Del Toro’. Na última sexta, 9, foi a vez da estreia de ‘Pinóquio por Guillermo del Toro’.
Pode parecer um excesso de ego por parte do cineasta, porém, faz todo sentido que, curiosamente, nos títulos das duas produções, constem seu nome. Ora, se no caso da série, e que saiu em pleno Halloween, o seu nome serve como um imã natural aos fãs do horror macabro, terror e suspense, alimentando ainda mais a curiosidade por uma obra com um viés já atraente a partir da execução planejada dos algoritmos da toda poderosa Netflix, no caso do filme, ter o nome de del Toro atrelado ao título foi uma forma de direcionamento e defesa ao mesmo tempo. Não havia e nem poderia haver a associação com um outro Pinóquio, lançado meses antes…
Também em 2022, um outro grande cineasta, Robert Zemeckis (De Volta Para o Futuro, Forrest Gump), lançou, pela Disney/Disney+, na comemoração do dia anual do serviço, a sua versão de Pinóquio. E contando com uma das superestrelas mais carismáticas de Hollywood: Tom Hanks. Se no Pinóquio de Zemeckis há uma insuficiência de qualidade, em ‘Pinóquio por Guillermo del Toro’ há sobras bem vindas de muita coisa que se destaca positivamente, justificando o fato de que era necessário haver essa indicação que o Pinóquio anterior é bem diferente deste.
Guillermo del Toro (Hellboy 1 e 2, O Labirinto do Fauno), Alfonso Cuarón (Roma, Harry Potter e o Prisioneiro de Azkaban) e Alejandro González Iñárritu (Gravidade, O Regresso) formam um trio de enorme sucesso de cineastas mexicanos carinhosamente conhecidos como Os Três Amigos. Dos três, talvez del Toro seja o que possua uma filmografia mais voltada ao cinema de gênero em si. Suas obras, em geral, utilizam-se da nossa curiosidade pelo mórbido, pelo grotesco, pelo gore, pelo horror, pela mitologia fantástica e pela fantasia em geral. Seria del Toro uma espécie de Tim Burton mais underground? Penso que não, já que, em linhas gerais, Tim Burton reveste a direção de arte, maquiagem e fotografia das suas histórias para que possamos encontrar, também, certo colorismo e meiguices bem vindas, quase sempre.
Del Toro, por outro lado, mescla forma e conteúdo para poder nos aprofundar em suas densas histórias. No caso de seu Pinóquio, para reforçar ainda mais a sua verve de nos atirar em suas densas narrativas, o cineasta utiliza até mesmo o contexto e os personagens totalitários da Itália fascista de Benito Mussolini. Não se furtando, inclusive, de felizmente zombar apoteoticamente sobre o ditador italiano quando o seu roteiro lhe permite, em uma cena antológica e um dos pontos altos do seu filme.
A história das histórias
Em relação à história aqui contada, não há grandes ou significativas mudanças. Todos os personagens principais da conhecida história de Carlo Collodi, o escritor italiano que publicou ‘As Aventuras de Pinóquio’ (1883) estão aqui. Temos Pinóquio, Geppetto, o Grilo Falante, a fada, a baleia e mais. E por se tratar de uma outra mídia, ou seja, uma adaptação de uma outra obra, é natural que nem todos os personagens apareçam por não casarem bem com a proposta do filme do livro. O que é perfeitamente natural e aqui, creiam-me, não farão tanta falta.
O Toque de Midas de del Toro é que, ao não se utilizar de certos personagens, ele ganha tempo e espaço para desenvolver e enriquecer o background de outros, como o próprio Geppetto (o Walder Frey, de Game of Thrones), que aqui ganha um filho chamado Carlo, em homenagem ao escritor.
Carlo é o chamariz inicial para que nos afeiçoemos pelo velho e bondoso inventor. Quando certa tragédia acontece, e que dá o pontapé inicial com a cruel e necessária abordagem que o filme faz do fascismo italiano, somos tomados pela dor que vemos em tela. Temos, então, um contexto bastante idílico da felicidade real em mundo ideal. Utópico, no entanto, já que os horrores da guerra, das bombas, dos tiros e das mortes ceifam as vidas e entristecem os lares.
A arte, em Pinóquio, está mais viva do que nunca
Embora a filmagem a partir da técnica de stop-motion não seja uma novidade, em Pinóquio sentimos e vemos os avanços da tecnologia a partir do imenso cuidado com cada movimento, expressão, cenário e objetos espalhados pelos cenários. Se em um live-action, hoje em dia e desde há muito tempo, utilizam-se muitas cenas em computação gráfica para redesenhar cenários, inserir o que antes não havia e criar toda uma situação fílmica, del Toro, adepto do naturalismo cinematográfico, usa efeitos mecânicos e práticos para arquitetar o seu filme, seus personagens e cenários. E ocasionalmente, faz-se uso de algum efeito digital.
Com isso, mesmo sendo um longa-metragem em stop-motion, nos sentimos lá, dentro do filme e cercado por personagens tão distintos, curiosos e interessantes.
Como se não bastasse o esmero com o visual do filme, na trilha sonora também há um cuidado ímpar. O compositor Alexandre Desplat, que já havia trabalhado com del Toro em ‘A Forma da Água’, retoma a parceria em um filme bastante digno e desafiador aos seus talentos. A primeira e talvez mais importante decisão de Desplat em relação à música do filme seria que ele e sua orquestra fariam uso apenas de instrumentos feitos de madeira, casando com a proposta mais barroca e idílica do filme, do personagem principal e com a profissão do inventor e co-protagonista.
“É mais um acerto da Netflix!”
Virou meme, de um bom tempo para cá, a frase do subtítulo acima. Meme e também proposta de marketing para disseminar que tudo que a Netflix faz é sempre bom. Se levarmos em conta a profunda quantidade de títulos que sempre chegam ao catálogo da empresa, é óbvio que nem tudo que chega lá é, necessariamente, bom. Na realidade, até grandes e caríssimas produções que chegam ao serviço são sempre boas. Pinóquio, por outro lado, é um excelente acerto da empresa do N vermelho.
O filme se parece bastante com o seu personagem principal: há coração e alma na versão de Pinóquio de del Toro e distribuída pela Netflix. Sempre foi um sonho do cineasta lançar a sua versão do filme do menino de madeira cujo nariz cresce ao mentir, mas, com o infortúnio do lançamento da versão da Disney/Disney+, seria e foi arriscado lançar outra versão no mesmo ano. Para sorte de todos nós, del Toro e Netflix foram em frente e entregaram uma das versões definitivas da obra em filme de Pinóquio, que certamente marcará a geração atual e, em 2023, poderá ser indicada em várias categorias do Oscar, desde Melhor Animação, como também, e não custar sonhar, ser uma das indicadas ao Oscar de Melhor Filme.
O horror, em del Toro, nunca foi tão real
De certa forma, del Toro transmuta os horrores do totalitarismo espanhol da época da Espanha franquista de ‘O Labirinto do Fauno’ para a Itália fascista do seu mais novo filme. Nesse sentido, Pinóquio forma uma ótima dupla com ‘Labirinto’, mostrando a segurança do seu cineasta em retratar como o diferente, lá (Fauno) e aqui (Pinóquio), não é — e nem precisa ser — algo a ser temido, visto que, o que mais assusta, é o caráter desumano das pessoas de carne e osso.